quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Thomas Hobbes


Nasceu Thomas Hobbes prematuramente em 5 de abril de 1558, na mesma época em que notícias da poderosa Armada espanhola de Felipe II deixavam toda a Inglaterra em sobressalto, fato aliás tradicionalmente apontado pelos seus contemporâneos, que consideravam a natureza particularmente assustadiça de Hobbes como oriunda do pavor que sua mãe sentiu da Armada durante a gestação daquele.
Era Hobbes filho de um pastor anglicano humilde e inculto de Wesport, cuja morte prematura fez com que aquele ficasse aos cuidados de um parente relativamente próspero, que o mandou para Oxford, onde travou contato como as disciplinas clássicas, como Lógica e Retórica que permitir-lhe-iam ingressar posteriormente como preceptor na casa dos Cavendish, pertencente à alta aristocracia inglesa, sob cuja proteção permaneceria até o fim da vida, ressalvados é claro os períodos de auto-exílio, motivados pela instabilidade política inglesa.
Não obstante a predileção de Hobbes pela atividade de preceptor dos Cavendish, que lhe dava não só acesso a respeitável biblioteca da família, como também tempo e tranqüilidade para a realização de seus estudos, que iam desde geometria euclidiana até história greco-romana (note-se que é dele a primeira tradução para o inglês da “História da Guerra do Peloponeso” , de Tucitídes, publicada em 1629), o fato é que sua primeira obra política de vulto iria surgir apenas à época de seu exílio em Paris, com a publicação do “De Cive” (Do Cidadão), onde encontrar-se-iam presentes as principais idéias mais tarde desenvolvidas de maneira mais aprofundada no Leviatã, publicado dez anos mais tarde, em 1651, quando já retornara definitivamente à Inglaterra, então sob o governo republicano do lord protetor Oliver Crowell.


A Inglaterra de Hobbes

Com a morte de Isabel I, encerrava-se a dinastia Tudor na Inglaterra, sendo então coroado rei Jaime Stuart, soberano da Escócia e parente em linha colateral de Isabel, fato que teria como conseqüência a elevação de uma família fervorosamente católica ao trono de um país onde a Igreja anglicana e demais seitas reformadas representavam já a fé da maior parte de seus habitantes.
Sendo os Stuarts oriundos de um país onde as prerrogativas reais eram exercidas sem encontrar forte resistência (Escócia), àqueles era bastante incômoda a presença de um Parlamento com ambições políticas cada vez mais pronunciadas, como ocorria na Inglaterra, fato que resultaria na colocação da coroa e do Parlamento em campos opostos, não só ponto de vista ideológico como também da luta armada, instaurada que seria uma guerra civil entre partidários do rei e do Parlamento (com a posterior vitória dos segundos).
De qualquer modo, tal quadro resultou para a monarquia inglesa durante o século XVII, em uma dupla crise de legitimidade, relacionada com os aspectos religioso e político.
Crise de legitimação religiosa da monarquia porque, se por um lado, a ruptura da coroa inglesa com o papado, promovida por Henrique VIII no século anterior, dera àquela a capacidade de que o rei se intitulasse líder supremo da Igreja, o sistemático desmonte da estrutura clerical que lhe sobreveio, facilitou a penetração gradual de elementos de origem protestante, que, ao considerar a Igreja como um corpo de eleitos, dava a estes últimos a capacidade de interpretação das Escrituras e prejudicava, por conseqüência, a consolidação, nas mãos do rei, de um poder dogmático religioso em moldes semelhantes ao que fora exercido até então pela Igreja Católica.
Paralelamente, a gradual consolidação política do Parlamento inglês, ou mais especificamente, da Câmara dos Comuns, impulsionada pelo crescente poder da própria burguesia, permitia que aquela se arrogasse em única representante legítima dos ingleses, pondo em cheque a legitimidade da realeza para continuar dirigindo os destinos da nação.
Neste contexto, não existia ainda uma teoria de fundamentação da centralização do poder soberano que pudesse fazer frente simultaneamente à dupla usurpação de autoridade, religiosa e política, da realeza, promovida respectivamente pelas Igrejas reformadas e pela Câmara dos Comuns, sendo portanto urgente a criação de um novo sistema de idéias que justificasse a necessidade de um poder centralizado nas mãos do soberano, não mais calcado na visão tradicional do rei como personificação do poder porque assim determinara a providência divina.
Tal tarefa foi encampada por Hobbes, e para levá-la a bom termo, utilizou-se este de um sistema teórico extremamente prestigiado em sua época, que era a teoria do direito natural. Mas para tanto, teve Hobbes que esvaziar tal doutrina da forte carga contestadora que possuía ante a hipótese da onipotência do poder, haja visto que, ao fundamentar a existência do poder político no consentimento dos indivíduos, afastava o contratualismo tradicional a hipótese daquele ser exercido de maneira legítima, contra os interesses dos cidadãos.

Estado e Legitimidade

Considerada como inflexível defensora do absolutismo monárquico, por meio da atribuição ao Estado de uma soberania que, no plano político interno não pode conhecer limites de qualquer natureza, destaca-se o Leviatã, das demais obras surgidas no mesmo período que defendiam a supremacia absoluta do poder do rei, por considerar este não como legítimo representante de Deus na terra, mas, basicamente, por uma característica bastante peculiar, que é a legitimação política desse mesmo soberano em bases puramente racionais, cuja irrestrita supremacia Hobbes defende, afastando-se da doutrina da legitimação divina dos reis, tão querida às monarquias de então.
A afirmação anterior, não obstante sua aparente simplicidade, merece contudo ligeira digressão a respeito das formas clássicas de legitimação política conhecidas pelo pensamento europeu desde seus primórdios, a possibilitar não só uma compressão mais sólida da visão hobbesiana do Estado, como também de parte dos motivos que asseguraram sua perenidade no âmbito do debate político ocidental.
Da análise das formas de legitimação do poder político conhecidas pelo homem desde a antigüidade, não obstante as inúmeras variações existentes ao longo das diferentes épocas, e dentro das mais variadas culturas, possível é a esquematização de tais espécies em categorias relativamente bem determinadas, representativas, em última análise, de diferentes estágios da própria história humana. Nesta linha, podem ser as diferentes teorias acerca da legitimação do poder surgidas ao longo da história reunidas em três grandes grupos, representativos da fundamentação teológica, voluntarista ou histórica do poder

Legitimação Teológica

Considerada como a mais antiga forma de legitimação política, implica a fundamentação teológica do poder político, em se reconhecer este como manifestação do poder da própria divindade sobre o plano físico, completamente subordinado as vontades daquela, sendo portanto, a organização política de uma sociedade, como nada mais do que uma continuação da organização de todo o cosmos, promovido por um ente de natureza supra-humana. Nesta visão de mundo, os crimes perpetrados contra o poder, mais do que uma afronta à integridade da coletividade humana, são vistas como afrontas à própria divindade, pois que aquela (a coletividade) não tem uma existência que se justifica por si só, mas existe basicamente para garantir as devidas homenagens a seus deuses.
Todavia, se a visão aqui exposta de maneira extremamente genérica, permite-nos observar, dentro de uma perspectiva histórica, um fio condutor existente na legitimação do poder desde Mênfis até Versailles, cumpre ressaltar contudo, a alteração introduzida no período medievo, por meio da consolidação do cristianismo, pois se enquanto na antigüidade, ressalvada a civilização clássica, o monarca era visto como uma encarnação do próprio deus (como no caso dos faraós ou imperadores persas), com o advento do cristianismo, o soberano passa a ser visto apenas como um representante de Deus na terra, pois que, dentro da visão cristã, a única encarnação humana da divindade estaria na pessoa do Salvador.

Legitimação Histórica

Quanto a perspectiva histórica da fundamentação do poder, buscava a legitimação deste último, considerando-o como fruto de uma evolução histórica gradual, tendente a garantir a harmonia social de maneira mais eficaz. Em outros termos, tal teoria, que considerava como insuficientes as abordagens religiosa ou contratualista, esta última por um excesso de racionalidade e autoconsciência inexistentes no plano fático, que a tornava tão metafísica quanto havia sido a visão teológica do poder, considerava o Estado com resultante de uma conjunção de interesses sociais, econômicos e culturais, que impunham um estudo específico do Estado dentro de cada cultura, para saber qual sua verdadeira natureza e quais as demandas para cuja satisfação havia sido criado.
Criada no século XIX, quando a idéia do livre arbítrio humano era cada vez mais problematizada, em função de uma contraposição daquele a fatores econômicos e sociológicos, cuja importância crescia por influência da doutrina marxista, não obstante estar a fundamentação histórica do poder cronologicamente situada em momento posterior ao contratualismo, optou-se por deixar este corrente por último, por ser a tradição intelectual em que se insere a própria obra de Hobbes, não se aprofundando aqui o estudo da visão histórica de legitimação para não se fugir do objetivo do presente trabalho.

Legitimação Voluntarista

Encontra-se a fundamentação voluntarista do poder intrinsecamente ligada à noção do contrato, razão pela qual tal teoria é também denominada de contratualista. Segundo tal visão, a origem do poder encontra-se não na manifestação de uma entidade metafísica, mas é resultante do acordo de vontades de homens que, cansados de viver em estado de natureza, prenhe de incertezas e adversidades, decidem juntar esforços na constituição de um poder capaz de garantir condições mínimas de sobrevivência para toda a coletividade, concordando esta, em contrapartida, em se submeter em maior ou menor grau segundo o autor considerado, ao ditames desta mesma instância superior.
Pode o contratualismo ser encontrado já na antigüidade clássica, como por exemplo em Platão, que em sua obra República, põe sete interlocutores a discutir as diferentes versões sobre a origem da pólis, estando estas divididas em opiniões tradicionais, de fundo mitológico; sofista, de cunho realista, em que o poder não é nada mais que manifestação do domínio do mais forte sobre o mais fraco; organicista (atribuída por Platão a Socrátes), em que a sociedade, e por conseqüência a estruturação de um poder político é um fato natural, resultado de um instinto social inato da humanidade; e contratualista, em que os homens, sofrendo as injustiças típicas de um estado de natureza, decidem instaurar a paz por meio de leis humanas, resultantes de pactos firmados pelos indivíduos.
Não obstante, na obra citada, partilhar Platão da opinião organicista (cujo maior prestígio objetiva atribuindo-a também a Sócrates), e que seria dominante por toda a Idade Média, por influência da obra aristotélica, é possível perceber pela rápida descrição da argumentação do filosófo grego, uma clara percepção da teoria voluntarista de legitimação do poder, naquele apresentada por meio de uma oposição entre nomos (leis instituídas por convenções humanas), e physis ( preceitos ditados pela natureza)
. Todavia, uma elaboração mais sofisticada de tal visão, iria ocorrer apenas com o avento do período moderno, a partir do séculos XVI, tendo em Althusius, Hobbes, Spinosa, Locke, Rousseau e Kant , alguns de seus principais teorizadores.
Claro que tal fundamentação voluntarista do poder, ao contrário do que poderia sugerir diante de uma leitura mais apressada, não implica necessariamente numa proposta de explicação histórica da origem da sociedade e do Estado, mas, em regra, refere-se a uma mera hipótese racional, isto é, uma proposta de visão do Estado como ele deve ser, e não como ele realmente é, fato que resulta portanto numa análise jurídico-racional do poder soberano, em que as obrigações políticas prescindem de uma fundamentação de cunho antropológico do poder estatal (contudo, se tal perspectiva de análise sempre foi a mais aceita por seus principais pensadores, como pelo próprio Hobbes, conforme se verá mais adiante, a abordagem antropológica não foi de todo desconhecida do contratualismo, tendo como exemplo mais expressivo a “Ciência Nova” de Vico, em que a preocupação de dotar o momento de instituição do Estado da maior historicidade possível aos olhos de seus contemporâneos, faz como que aquele chegue a inserir o fim do estado de natureza dentro da cronologia bíblica, supostamente ocorrido após o dilúvio universal
).
Dentro de uma evolução histórica, o motivo do estudo da fundamentação contratualista ter atingido um grau de profundidade maior apenas ao final da Idade Média, haja vista que sua percepção, conforme já demonstrado, já remontava a própria antigüidade clássica, deve-se basicamente ao fato de que, pelo caráter eminentemente lógico e racionalista da análise que o contratualismo faz do poder, resultar, por via de conseqüência, em forte resistência por parte dos segmentos dominantes, em contextos em que a legitimação do sistema político repousa sobre preceitos de ordem religiosa, marca característica aliás de toda a Europa durante o período medievo, caracterizada por um modelo de organização política complemente embasado em uma tradição religiosa milenar. Tal tradição religiosa, dominante até por volta do século XVI, foi, historicamente falando, posta em cheque no plano intelectual, por um racionalismo emergente, que analisava todos os fatos concretos dentro de uma perspectiva puramente humana, lançando mão apenas da razão e da experiência para o estudo do universo sensível (e cuja ressonância mais imediata, no campo da política, é a própria doutrina contratualista). Esta nova forma de pensamento, não obstante ser umas das marcas mais características do mundo moderno, não conquistou de pronto uma posição de hegemonia na tradição intelectual européia, permanecendo durante todo o período que assinalou sua lenta consolidação (ocorrida entre os séculos XVI e XVIII) em estado de permanente tensão como os valores tradicionais herdados do período medieval, que não obstante estarem em franco declínio, tinham ainda força suficiente para mandar para a fogueira as vozes que fossem consideradas excessivamente ousadas. Na verdade, tal clima de conflituosidade entre valores tradicionais versus tendências racionalistas, foi a moldura onde se inseriram os mais importantes movimentos que animaram a cultura européia, como Renascença, Contra-reforma ou Iluminismo, atingindo seu clímax no âmbito do espírito europeu em fase denominada de período barroco, que mais do que simples tendência artística, foi na verdade um dos momentos mais perturbadores da consciência européia, em que uma verdadeira guerra de idéias impedia que os espíritos da época encarassem qualquer crença como absolutamente infalível, contraposta que estaria a todo momento, a um argumento contrário que possibilitasse sua refutação. É foi essa época, de generalizado conflito, não só intelectual, como também político, que foi a época de Hobbes, que, amante da estabilidade, teria como maior preocupação justamente propor uma situação de equilíbrio, por meio de sua obra, para o conturbado cenário político de sua época, devendo aquela portanto, sob pena de uma compreensão defeituosa, ser analisada em conjunto com o momento histórico de profunda instabilidade em que esta foi criada.

Hobbes contratualista

Conforme já afirmado anteriormente, foi Hobbes uma dos maiores expoentes da corrente contratualista, a fundamentar a legitimidade do Estado em um contrato firmado por todos os homens que decidem abandonar um suposto estado de selvageria, normalmente denominado de estado de natureza, e fundar um novo modelo de sociedade, regida por leis que garantam a convivência harmônica entre todos.
Ora, não obstante ser a conceituação de Estado presente no Leviatã um dos objetivos da presente obra, tal compreensão só poderá portanto ser obtida na medida, que for corretamente entendido o sentido que o autor dá ao próprio conceito de contrato, identificando exatamente o que ele encerra e o que cria para os homens. Ora, quanto a esse aspecto (das causas e conseqüências do contrato), Hobbes o analisa por. meio da divisão do problema em várias etapas que se sucedem de maneira lógica e inflexível (lembre-se da proposta cartesiana para superação de problemas, por meio de sua divisão em proposições menores, a serem analisadas separadamente e segundo uma ordem crescente de dificuldade), indo por etapas de um egoísta e belicoso selvagem (o homem natural), até um todo poderoso Leviatã (o homem artificial).
Sobre a sociedade civil organizada tal como a conhecemos, isto é, uma sociedade regida por leis positivas, em contraposição ao estado de natureza, considera Hobbes ter sido aquela criada por um acordo de vontades manifestado por indivíduos que concordaram em viver sob a égide de uma instância superior, que, a partir da celebração daquele pacto, teria então o poder de regulamentar toda a vida da coletividade, com o intuito de garantir um mínimo de harmonia nas relações existentes entre os homens. Por meio deste pacto, renunciaram os homens à liberdade absoluta que desfrutavam no estado de natureza, mas, em compensação, se livraram também da absoluta insegurança que existia nas relações humanas, resultante da mesma já mencionada liberdade. Isso porque, para Hobbes, o estado de natureza era aquele em que o homem poderia dar inteira vazão ao seus impulsos, pois que só encontraria como barreira, os impulsos dos outros homens que se dispusessem a combatê-lo, ensejando tal quadro, para sua maior compreensão, uma exposição mais detalhada da natureza humana, tal como esta é entendida dentro do Leviatã.

Da natureza humana

Conforme se percebe pela leitura da introdução do Leviatã, Hobbes, ao descrever a estrutura de seu modelo de Estado, o faz por meio da comparação com o próprio ser humano, considerando que, enquanto o Estado é obra de arte, ou máquina segundo expressão do próprio autor, criada pelas mãos humanas, é o próprio ser humano uma espécie de mecanismo, só que da natureza: “pois o que é o coração senão uma mola, e os nervos, senão outras tantas cordas, e as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice? Tal descrição, mais do que mera metáfora gratuita visando ao embelezamento do texto, coisa que o próprio Hobbes desprezava, conforme se observa pela leitura do capítulo IV do Leviatã
, em que aquele declara prezar acima de tudo um estilo de linguagem claro e objetivo, revela na verdade uma percepção dinâmica da natureza humana, em que esta é entendida como espécie de autômato, demonstrando na verdade uma clara influência das idéias mecanicistas, tão em voga na época do autor inglês. Segundo tal visão mecanicista, era o homem, assim como o restante dos animais, entendidos como espécies de máquinas, formados pela união de várias peças menores. Tal entendimento, era fruto em grande parte dos progressos ocorridos na época no campo da autonomia, que ao atentar para a complexa estrutura interna dos seres, tentava explicá-la por meio de sua comparação com as estruturas mecânicas então conhecidas.
Dentro de tal perspectiva mecânica da natureza, dois são os tipos de movimentos percebidos por Hobbes, que fazem a máquina humana se mover, denominados de vital e animal. Enquanto ao primeiro tipo pertencem aqueles cuja realização independe do pensamento, sendo portanto movimentos involuntários, como a respiração, circulação sangüínea ou digestão, ao segundo tipo pertencem os movimentos cuja realização depende de uma manifestação de vontade, como falar, andar ou se mover. Tal manifestação de vontade, por sua vez, é ocasionada, segundo Hobbes, pelas sensações, que por sua vez podem ser reduzidas a duas espécies apenas, que são apetite e aversão, assim entendidos todos os esforços de aproximação ou afastamento daquilo que proporcione respectivamente prazer ou dor ao ser humano.
Ora, reconhecer, como faz o próprio Hobbes, que todos os homens são iguais quanto às faculdades de corpo e espírito, significa também dizer que, sob um prisma puramente natural, todos os homens se equivalem em valor , haja visto seus recursos físicos e intelectuais (não obstante as variações existentes de indivíduo para indivíduo) colocarem todos estes em um mesmo nível de capacidade. Deste modo, forçoso é também reconhecer que, no caso de algo proporcionar prazer a dois ou mais homens simultaneamente, estes tenderão, usando de todos os recursos que estejam a sua disposição, tentar se apropriar deste mesmo objeto. O resultado de tal situação, é necessariamente um quadro de conflituosidade entre os indivíduos, que lutam pela posse de um número insuficiente de bens, lançando mão, para tanto, de todos os recursos físicos ou intelectuais disponíveis para satisfizer suas necessidades (observe-se que, pelo fato destas mesmas potencialidades serem mais ou menos iguais entre todos os homens, iguais também serão também as esperanças de cada homem em conseguir obter os bens ambicionados). Neste contexto, poder-se-ia dizer que o direito absoluto que cada homem tem no estado de natureza sobre todas as coisas que se apresentarem ao seu alcance, é permanentemente obstaculizado pelos outros homens como os quais é obrigado a conviver.
Quanto à visão de Hobbes a respeito da natureza humana, tão pouco lisonjeira quanto a desenvolvida por Maquiavel, implicava em reconhecer a cupidez e a ambição como inatas ao próprio gênero humano, e, portanto, incapazes de serem suprimidas pura e simplesmente, ou reformadas por meio da educação. Deste modo, é o homem hobbesiano a personificação do individualismo elevada a sua máxima potência, levando uma existência cujo maior objetivo é a posse. Posse de bens e riquezas materiais que lhe assegurem uma existência faustosa, posse de estabilidade, que lhe assegure o efetivo gozo dos frutos de seus bens, posse de reputação, a garantir um tratamento contido e respeitoso por parte dos outros indivíduos com os quais aquele mesmo homem é obrigado a conviver.
É aliás o próprio Hobbes que afirma que, a raiz de todos os conflitos é causada, simultaneamente pela competição, pela desconfiança e pela glória: pela competição em função do fato de que, sendo todos os homens iguais em capacidade, também serão iguais quanto à esperança de atingir seus fins, e, havendo um objeto que seja cobiçado por dois homens simultaneamente, estes haverão de ser fatalmente inimigos entre si. Tal inimizade, mesmo que não implique em uma violência imediata, gerará necessariamente um estado de desconfiança entre as partes, em que cada um julgará ser mais seguro se antecipar às investidas do inimigo (numa espécie de violência por antecipação causada pela natureza temerosa do homem). Mas se dentro deste quadro de ambição e covardia, ainda assim, e contra todas os prognósticos continuarem os homens em paz, haverá ainda a vaidade, terceira Éris a semear a discórdia entre os homens, a fazer que estes lutem pelo reconhecimento por parte dos demais, de sua superioridade, razão pela qual, afirma o próprio Hobbes que cada um pretende que o seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio.

Estado de natureza

Por meio da descrição das principais inclinações da natureza humana, considera Hobbes ter deixado suficientemente provado que, se aquelas forem deixadas num estado de total liberdade de ação, só poderão redundar numa situação de belicosidade generalizada, ou em outras palavras, de guerra, afirmando o próprio autor que:

Durante o tempo em que os homens vivem sem esse poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra, uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no acto de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.

Uma vez provado que tal estado de natureza é necessariamente um estado de guerra, passa Hobbes a descrever os efeitos de tal estado sobre a própria cultura humana, em passagem tida como das mais famosas de toda a obra:

Numa tal situação, não há lugar para a indústria, pois o seu fruto é incerto conseqüentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta
.

Ora, num quadro assim, a violência, e por conseguinte, a insegurança e o medo daquela decorrentes, atingem níveis insuportáveis, que fazem como que o homem, dotado de razão
, reconheça que, malgrado a liberdade absoluta que possua no estado de natureza, já contabilizadas todas as vantagens dela decorrentes, seja ainda assim aquele uma situação desvantajosa para se viver, consideradas as desvantagens ela inerentes, e que consistem não só no medo e a insegurança decorrentes da real possibilidade de cada indivíduo vir a ser vítima de morte violenta, ou, pior ainda, segundo um ponto de vista burguês, ser despojado a qualquer instante, de todos os frutos de seu trabalho. Sim porque, para Hobbes, inexistindo uma instância superior que garanta o reconhecimento de direitos por toda a coletividade (como sói acontecer com o próprio estado de natureza), impossível é falar de direitos, tal como entendem os homens civilizados, no âmbito do estado de natureza. De fato, onde todos podem se arrogar o direito a tudo, ninguém pode ter realmente o direito a nada, pois que sujeito a dele ser despoja do a qualquer momento, por alguém que lhe seja superior em astúcia ou força. Neste ponto, de uma lógica realmente surpreendente, observa-se na verdade o fundamento para que, em momento posterior, promova Hobbes a mais completa absorção da esfera privada pela pública, caracterizando-se em um ponto de ruptura daquele com a maioria dos contratualistas de sua época. Pois se enquanto estes reconheciam ao homem do estado de natureza uma série de direitos que existiriam independentemente do Estado (sendo portanto naturais), para Hobbes, tais direitos surgiriam apenas com o Estado, haja visto que este só poderá garantir sua efetiva observância por todos os homens.
Mas como se não bastasse, afirma ainda Hobbes que dentro do estado de natureza, a própria moral não pode subsistir, isso porque, no estado de natureza hobbesiano, o homem, ao buscar saciar suas paixões, não leva em conta os interesses de terceiros, o que gera um desenfreada competição que não dá margem a tentativas de composição de interesses (não é possível portanto, construir espaços localizados de consenso num universo dominado pelo conflito) o que, em um fim último, impossibilita a criação de um código moral entre os homens. Isso porque, entendo-se por moral determinadas noções sobre o comportamento humano capazes de serem compreendidas de igual maneira por todos os homens, e sendo cada homem, no estado de natureza, movido apenas pela satisfação de seus próprios interesses, via de regra em choque como os interesse de outros homens, será considerado como bom ou mau apenas aquilo que causa dor ou prazer a cada indivíduo, e nada mais.
Deste modo, a organização dos homens em uma coletividade organizada, para Hobbes, não é fruto de alguma inclinação inata do homem para a vida em sociedade, conforme pensavam os europeus, cultores de uma tradição intelectual oriunda da antiga Grécia, a considerar o homem como naturalmente inclinado para a vida pacífica em sociedade. Ora, pelo que foi demostrado, se inclinação natural no homem hobbesiano existe, com certeza não é tendente à sociabilidade, mas à sua pura e simples auto-conservação, que, considerada isoladamente mantém o homem, antes de tudo, agrilhoado a um cenário de destruição e morte. Será preciso que suas paixões e apetites conjuguem-se como sua razão, entendida pura e simplesmente em atribuir valores a fatos possíveis de serem mensurados e comparados para que se construa um espaço civilizado.
Cumpre contudo ressaltar a inafastabilidade da conjugação de razão e paixão para se sair do estado de natureza, pois a própria razão, quando considerada isoladamente, é incapaz de instaurar, ou ao menos garantir, um estado de paz entre os homens (lembre-se de uma guerra civil, por Hobbes considerada como equivalente ao estado de natureza, em que os homens, mesmo sendo possuidores de todas as suas faculdades, pilham e matam como se jamais tivessem conhecido outro estado que não o de barbárie). Deste modo, será preciso, como já lembrado anteriormente, a união das paixões, a desejar não só a satisfação das ambições, mas num ambiente de paz que garanta a certeza de sua própria fruição, como a razão, a avaliar a inferioridade de uma situação de guerra quando comparada com um estado de paz, onde os homens renunciem a tentar satisfazer plenamente todas as suas vontades.
Todavia, a razão, além de possibilitar comparação entre duas situações, indica também quais os meios de se obter determinados resultados, ou, no caso em tela, mostra a razão quais os meios necessários para a instauração da paz entre os homens, entendendo Hobbes serem tais preceitos racionais como as únicas leis naturais realmente existentes, afirmando o próprio autor inglês que :
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão , mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários para a preservar, ou omitir aquilo que pense melhor contribuir par a preservar.

Destas leis, considera Hobbes como sendo a lei natural por excelência (lei natural fundamental), aquela que afirma que: Que todo homem se deve esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar usar todas as ajudas e vantagens da guerra.
Todavia, lembra o autor que, a rigor, a lei natural (auferida pela razão) encontra-se apenas no primeiro enunciado (que todo o homem deve se esforçar para alcançar a paz), que caso não possa ser realizado, dará lugar ao completo domínio das paixões, expresso no segundo enunciado (procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra)
.
Não obstante chegar Hobbes em momento posterior de sua obra, a elencar todas as 19 leis da natureza existentes (que os homens consintam em renunciar aos seus direitos sempre e na mesma a medida em que os demais também o fizerem, que os homens cumpram os pactos que celebrarem, que cada um se esforce por se acomodar como os outros, etc
), todas elas destinadas a implantar da maneira mais eficaz possível a sua lei natural fundamental, não deixa de ser curioso, embora rigorosamente lógico, que para este, se alguma lei natural existe, é aquela que manda os homens saírem o mais depressa possível do estado de natureza.
Realmente, conforme já observado anteriormente, ao descrever o estado de natureza, deixa Hobbes bem explícito entendê-lo como um estado de total anarquia, despido de leis não só em um sentido positivo, como também de qualquer padrão moral hábil a julgar as condutas humanas de maneira objetiva. Neste quadro, ao qual Hobbes recusou-se a reconhecer inclusive a existência de qualquer direito, seria no mínimo um contra-senso começar a se falar de leis naturais, entendidas como comandos que regulassem a conduta humana de maneira obrigatória dentro do estado de natureza, haja vista a completa inexistência de qualquer espécie de órgão que pudesse garantir coercitivamente sua observância, no caso de não ser cumprida espontaneamente por todos os homens, razão pela qual , para Hobbes, as próprias leis naturais, enquanto ainda não instituído um poder soberano, nada mais são do que leis de foro interno (dirigidas à consciência), que apenas impõem o desejo de serem cumpridas, embora a isso não obriguem. É alias o que afirma Hobbes da seguinte maneira:
Porque as leis da natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de as levar a ser respeitadas, são contrárias às nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém.

Deste modo, para Hobbes, é o estado de natureza a situação onde inexiste qualquer espécie de regimento imposto por leis naturais, que segundo aquele, afirmam, ou melhor recomendam, que tal situação deve ser abandonada em prol de um estado de paz (ainda assim de maneira puramente recomendaria, equiparando-se portanto mais a uma sugestão do que uma norma em sentido positivo, única que, na visão hobbesiana, merece ser denominada de lei).

O pacto

Mas, conforme já referido anteriormente, estando os homens cansados com esse estado generalizado de barbárie, por reconhecerem que ele é, em última análise, mais prejudicial que benéfico à satisfação de suas paixões, decidem, por meio da renúncia de parte de sua liberdade, consentir na construção de uma instituição cujo poder seja capaz de proteger cada indivíduo das ambições de seus pares, como também, proteger todos estes de ataques externos de outras nações.
Quanto à cessão de tal poder ao Estado por parte dos indivíduos, poderíamos dizer que se processa por meio de uma procuração , onde cada indivíduo, consente não só em transferir parte de sua antiga e desmesurada liberdade ao Estado, como também se compromete em considerar as futuras atitudes deste poder como se suas fossem, pois, tendo o Estado, como objetivo maior, garantir a estabilidade a qualquer custo, e por conseqüência, preservar a integridade dos cidadãos, compartilha aquele portanto com o mesmo objetivo da maioria dos seres humanos, que a busca da auto-preservação destes últimos por meio da conservação de uma situação de paz social.
É o que se infere aliás das palavras do próprio Hobbes, quando este, ao comentar o modo de constituição de um Estado, afirma ser necessário:
(sic)...designar um homem ou assembléia de homens como representante de sua pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa a sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e a segurança comuns
.
Mas uma vez passada tal procuração, que Hobbes considerava irrevogável e por tempo indeterminado, sob pena de voltar ao estado de natureza no caso de uma hipotética resolução do contrato
, quais os verdadeiros contornos da estrutura daí advinda?

O Estado-Leviatã

Dada a já referida insociabilidade natural do homem, o pacto por ele firmado com seus pares, tem natureza essencialmente artificial, no sentido de ser o fruto de uma conjugação de esforços tendentes à criação de algo que jamais se formaria caso ficasse apenas na dependência dos instintos humanos. Tal visão de Estado, enquanto ser artificial por excelência, verdadeira máquina formada pela concatenação de peças menores que são os indivíduos, encontra-se exposta já na introdução da obra ora em análise, onde afirma Hobbes em famosa passagem que:

Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã que se chama o Estado , ou Cidade (em latim, Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado e no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro, os magistrados e outros funcionários judiciários ou executivos, juntas artificiais recompensa ou castigo (pelos quais, ligados ao trono da soberania, todos as juntas são levadas a cumprir o seu dever)
Sobre tal conceituação , pode aqui ser repetida, mutatis mutandis, a mesma consideração feita quando exposta a abordagem promovida por Hobbes a respeito do homem (um autômato cujo movimento contínuo é ocasionado pelas suas paixões), ambas ressonâncias de uma visão de mundo mecanicista, já comentada anteriormente, a considerar , desde o mais ínfimo dos insetos até o próprio universo, como o resultado da concatenação de diferentes peças em um sistema mais complexo e em constante movimento, bastante assemelhado a uma máquina.
Mas, uma vez formada essa grande máquina artificial que é o Estado, posta em constante movimento pela força combinada de uma infinidade de peças menores, que são os próprios indivíduos, começará o mesmo a agir visando à realização da paz social. Nesta busca do Leviatã pela paz entre os indivíduos, poucos serão, para Hobbes, os direitos naturais que possam servir de óbice para aquele. Ou melhor, segundo uma visão tradicional do contratualismo, existiam certos direitos naturais fundamentais, como direito à vida, à liberdade e à propriedade, cuja vigência apenas se prolongava no estado civil, e que flexionavam a criação do próprio Estado, na medida em que este só seria implantado para garantir uma maior eficácia daqueles. Ora, sendo o Estado o garantidor por excelência dos direitos naturais, toda vez que este promover um ato que fira alguns destes direitos, estará o fazendo de maneira completamente ilegítima, e, por conseqüência, passível de sofrer uma justa resistência por parte de seus súditos.
Já para Hobbes, ao contrário, não pode o Estado, no exercício de seu poder, encontrar limites de qualquer espécie, manifestando-se a superioridade de seu poder sobre todos os membros do corpo social, em um conjunto de enunciados presentes no capítulo XVIII, que dizem respeito não só a atributos clássicos do poder soberano, como por exemplo o monopólio do Estado de resolver as controvérsias entre os súditos, de declarar a guerra e negociar a paz etc, mas se referem também a outras exigências estatais, que, da maneira clara como estão expostas, garantiram à Hobbes a fama de inflexível defensor dos sistemas absolutos, como por exemplo a incapacidade dos súditos de mudar a forma de governo, independentemente das ações deste, que jamais poderão ser consideradas pelos súditos como injustas, tendo em vista que é o próprio soberano a medida do bem e do mal.
Alterando como lógica férrea a idéia de que a doutrina jusnaturalista fazia do contrato social, segundo a qual esta era celebrado entre o soberano e seus súditos, considerava Hobbes ser impossível a celebração de um contrato com alguém que ainda não existia (no caso o Estado, cujo nascimento se dá justamente com a celebração do pacto de sociedade). Nesta linha de pensamento, aquele só poderia ser celebrado entre cada homem com cada homem. A conseqüência desta nova leitura é que, sendo firmado o contrato apenas pelos homens entre si, por meio do qual, todos concordam em renunciar ao direito absoluto sobre todas as coisas que existem no estado de natureza, e não entre os súditos e o soberano, são apenas os súditos que ficam comprometidos, e não o soberano. Deste modo, jamais poderão os súditos cobrar satisfações do Estado, sob cujo poder absoluto concordaram em viver, a respeito do descumprimento de leis naturais (que em Hobbes são esvaziadas quase que complemente, se considerado o conteúdo que o jusnaturalismo tradicional atribuía àquelas).
Mas diante de tal criatura onipotente que é o Estado hobbesiano, diante do qual as próprias leis são incapazes de limitar sua atuação, já que, não podendo estar ninguém limitado por si mesmo, também não pode o soberano estar limitado pelas leis que ele mesmo estabeleceu, não poderá haver segurança alguma dos cidadãos sobre os seus direitos de maneira geral?
Para Hobbes, sendo o estado de natureza um estado de miséria por excelência, por mais prejudicial que possa parecer o exercício do poder soberano (opinião aliás questionável, haja visto os juízo humanos estarem sempre acorrentados a egoístas paixões), este será sempre superior àquele estado de guerra onde a insegurança em relação aos direitos será absoluta. Deste modo, afirma o autor inglês que, mesmo na hipótese do poder do Estado ser exercido em proveito dos ocupantes daquele, que enquanto seres humanos também são dotados de ambições e apetites particulares, tal fato será ainda preferível a qualquer espécie de revolta civil que tente suprimi-lo, em função de que o estado de natureza com aquela instalado será muito mais deletério aos indivíduos. Ou nas palavras do próprio Hobbes:
“...a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca monta quando comparada como as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil.

De qualquer maneira, fraco consolo é o oferecido por Hobbes àqueles obrigados a viver sob o jugo de um poder tirânico, orientados que são a pensar que, apesar de tudo, o estado de natureza instaurado com a desobediência civil seria sempre pior que o mais terrível dos despostismos, lembrando a clássica visão medieval segundo a qual, pior que se revoltar contra seu soberano, é arder no inferno pelo fato de ter se revoltado contra um poder, que, por mais violento que posa parecer, nada mais faz que exteriorizar os objetivos da própria providência divina com relação à humanidade decaída.
Mas enganar-se-ia que pensasse que tal obediência ao Estado-Leviatã é de natureza completamente ilimitada, pois, chegado o momento em que aquele não consiga mais garantir a principal finalidade para o qual foi criado, qual seja, garantir a paz entre os indivíduos, e, por conseqüência, a própria integridade destes, quebrado estará o vínculo de obediência entre o soberano e súdito, estando este liberado para exercer seu direito absoluto sobre todas as coisas, típico do estado de natureza que o Leviatã deixou que ressurgisse, numa visão absolutamente lógica para um Hobbes que colocava a raiz do Estado no direito absoluto de cada indivíduo de proteger a si mesmo das violências do estado de natureza
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Hobbes positivista?

Mas diante da absoluta ineficiência prática de qualquer enunciado de ordem puramente natural, que, conforme demonstrado anteriormente, só são revestidos de real eficácia com a instauração do poder político, a tornar obrigatória a sua observância por todos os indivíduos, poder-se-ia perguntar até que ponto, Hobbes, até agora apresentado como jusnaturalista, não seria na verdade um dos precursores do positivismo jurídico, aqui entendido como a visão que considera como Direito (como lei, segundo diria Hobbes), válido e eficaz, apenas ao conjunto de normas emanadas do Estado, que, por meio de sua coercitividade, garantiria a observância de todas aquelas.
É o que pensa aliás Jean-Jacques Chevallier, que ao comentar a existência de um Hobbes positivista afirma o seguinte:
Sem dúvida, e do mais radical. O Direito para, para Hobbes, não tem nem pode ter senão uma fonte: o Estado, isto é , o Poder, isto é, a ordem, a expressão da Vontade. Direito natural, direito racional, reflexos da Razão, não são, aos olhos de Hobbes, Direito.

Mas ao enfrentar tal questão , atenta Bobbio inicialmente para a excessiva generalidade de um conceito como jusnaturalismo, a abranger não só vários séculos de evolução intelectual, como também uma miríade de diferentes autores. Nesse contexto, afirma Bobbio ser possível perceber a existência de três correntes jusnaturalistas, considerando pertencer a um jusnaturalismo latu sensu todo sistema que compartilhar de duas premissas básicas: 1) além do direito positivo, existe também um direito natural. 2) tal direito natural é superior ao direito positivo.
Todavia, é na maneira como se exterioriza a referida superioridade, que, segundo Bobbio, é possível distinguir três correntes distintas no âmbito do jusnaturalismo, ou segundo palavras do próprio autor:
Portanto necessário, para se evitar confusões e desentendimentos, distinguir três espécies de sistemas jusnaturalistas, mediante a formulação de três teses gerais; 1) o direito natural e o positivo mantém entre si uma relação de princípio e conclusão, de máximas gerais e aplicações gerais concretas); 2. o direito natural determina o conteúdo das normas jurídicas; tornando-as obrigatórias, o direito positivo garante a eficácia dessas normas; 3. o direito natural constitui o fundamento da validade do ordenamento jurídico positivo , considerado no seu conjunto.


Para Bobbio, alinha-se o jusnaturalismo de Hobbes com a terceira corrente na medida em que as leis naturais, mais do que objeto de mera transposição para uma dimensão positivada, são na verdade o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico.
Não obstante a aparente semelhança entre os três enunciados anteriormente descritos, o fato é que, enquanto a segunda corrente demonstra um visão de direito natural entendido como norma de caráter substancial, de eficácia apenas reforçada com a instituição do pacto social, a terceira, ao seu turno, promove a legitimação de um complexo de normas jurídicas não por considerá-las como meras transposições positivadas de leis naturais, mas remete a fundamentação do sistema positivo inteiro a um contrato social, que legitima de maneira genérica todo o referido sistema, cujas disposições independentemente das verdadeiras causas histórico-sociais que deram origem a cada uma das normas que a compõem, consideradas isoladamente, tem a obrigatoriedade de sua observância genericamente fundamentada no contrato instituidor do poder político.
De fato, conforme já referido anteriormente Hobbes considerava a hipótese do estado de natureza como uma situação de absoluta anarquia, onde a conduta humana, movida apenas pelas suas paixões, impedia a criação de consenso entre os homens sobre determinadas relações, que, por conseqüência, não podiam ser expressadas sob a forma de comandos gerais e abstratos, haja vista que, se porventura implementadas, poderiam ser quebradas sempre que contrários ao interesse de qualquer pessoa. Em tal contexto, onde Hobbes chega a negar a possibilidade não só da propriedade privada (existindo apenas a posse, regida pela “lei” do mais forte), como da própria moral, onde um egoísmo sem limites impede qualquer consideração para com os interesses do próximo, impossível é portanto falar de leis naturais, a regular condutas de maneira objetiva e eficaz, mas, quando muito, de conselhos, dirigidos ao foro íntimo de cada um e obedecidos apenas pelo homem que considerar vantajoso assim proceder.
Ora, não obstante ser a visão de Hobbes a respeito da lei, um entendimento essencialmente positivista (na medida que como lei só será reconhecida caso seja criada e imposta pelo Estado), o fato dele ter deixado a validade das normas positivas se remeterem a um direito natural, é por si só suficiente para considerar o autor inglês como jusnaturalista, haja visto que reconhece expressamente a existência de normas naturais que transcendem ao complexo normativo positivado, e com este não se confundem (independentemente da eficácia ou do conteúdo atribuídos a estas leis naturais).
De fato, como foi observado anteriormente, a doutrina do direito natural, por sua base fundamentalmente voluntarista, colocava sérias limitações ao exercício do poder político, visto ter sido tal poder implementado com a anuência dos indivíduos, para justamente garantir direitos destes preexistentes à sociedade civil (embora a descrição de quantos e quais eram os direitos naturais variasse de autor para autor). Ora, mesmo que Hobbes, ao contrário, construa, a partir deste mesmo estado de natureza, o elemento legitimador de um aparelho onipotente, que em nome da manutenção da tranqüilidade social, monopoliza o poder de criação de normas jurídicas, tal fato não é por si só suficiente para afastar a inegável legitimação destas últimas promovida por Hobbes com base no contrato, por meio do qual, todas as pessoas, devem considerar sua obediência civil como originária de um pacto firmado voluntariamente entre todos os membros da sociedade.
Razão considerada por Hobbes como a mera capacidade de adicionar e subtrair, no sentido de se criar uma soma total ou resto, não só de números, como também de todas as coisas passíveis de cálculo. Ou segundo palavras do próprio Hobbes: Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra...(sic) Estas operações não são características apenas dos números, mas também de toda a espécie de coisas que podem ser somadas juntas ou tiradas umas das outras.
É interessante observar que, ao tratar da irrevogabilidade do pacto social, Hobbes o faz por meio de uma refutação da teoria aristotélica do zoom politikom (animal político). Segundo o pensador inglês, os instintos naturais do homem são extremamente antisocietários, na medida em que a inveja e a rivalidade fazem como que o homem tente se sobressair incessantemente do resto da coletividade, de maneira diferente portanto das abelhas ou formigas (por Aristóteles também considerados como animais políticos), em que a satisfação dos apetites individuais coincidem de maneira perfeita com a satisfação dos interesses de toda a comunidade. Destarte, além do fato do homem só obter satisfação pela comparação como outros homens, é importante que a razão, privativa do homem, possibilitar a formulação de juízo críticos a respeito das instituições, primeiro passo para uma guerra civil.

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