segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

SÚMULA VINCULANTE (SV)


1. Introdução:
Nesses 20 anos da promulgação da CF88, nossa Carta Magna já passou por várias alterações, decorrentes da manifestação do poder constituinte derivado revisor (ECR 1 a 6) e reformador (EC 1 a 56). Além disso incontáveis foram suas mutações constitucionais, mercê de interpretação constitucional realizada pelo seu guardião: o STF (CF, art. 102, caput). Dentre as alterações citadas, certamente uma das que gerou maior polêmica foi a Reforma do Poder Judiciário (EC nº 45, de 08/12/2004). Com relação à introdução da SV, em especial, tivemos acaloradas discussões no meio jurídico, principalmente entre aqueles que a defendem como instrumento jurídico que permite imprimir maior celeridade à prestação da tutela jurisdicional e, portanto, combater a morosidade no Poder Judiciário, realizando uma garantia fundamental, também introduzida pela EC 45/04, no inciso LXXVIII do art. 5º da CF88. Por outro lado, outros juristas argumentam que a SV desnatura a atividade jurisdicional, retirando a independência do órgão julgador (juízo monocrático ou tribunal) para, fundamentadamente, conhecer, processar e julgar os feitos que lhe sejam distribuídos. As discussões sobre o instituto ainda perduram, notadamente quando o STF edita SV que contenha algum conteúdo polêmico.

2. Breve histórico: Dentre as “famílias” do direito que têm influência no direito brasileiro, temos a romano-germânica, também chamada do direito codificado continental (civil law) e a família da common law. O modelo codificado e que atende ao pensamento abstrato e dedutivo é o adotado precipuamente no Brasil. Já o modelo judicialista-construtivo ou jurisprudencial obedece a um raciocínio mais concreto, centrado na primazia da decisão judicial. Assim, enquanto o primeiro basea-se essencialmente na norma, no segundo a jurisprudência tem papel preponderante. Uma das fortes influências da família do common law no direito pátrio é o precedente judiciário (stare decisis), com adoção de efeito vinculante, impondo aos juízes julgar de acordo com a decisão no caso concreto, adotada pelo órgão hierárquico superior. Por outro lado, sofremos influência direta também do sistema de controle de constitucionalidade concentrado, oriundo da Alemanha, que confere efeito vinculante nas Ações correspondente (ADIn e ADeCon). No Brasil, as origens históricas das decisões judiciais com efeito vinculante, remonta ainda à nossa fase colonial, desde 1521, com as Ordenações Manuelinas, que instituíram os assentos, depois aperfeiçoadas pelas Ordenação Filipinas e denominados assentos da Casa de Suplicação, com força vinculativa. Os assentos foram extintos pela “Lei da Boa Razão”, de 18/08/1769 e restabelecidos mediante “Alvará Régio” de 10/05/1808, que também instituiu a Casa de Suplicação do Brasil. O uso dos assentos perdurou durante nossa fase monárquica, sendo extintos definitivamente pela Constituição Federal de 1891. A partir de 1963 institui-se a Súmula da Jurisprudência Predominante do STF e em 1988, o STJ é criado pela atual CF88 com possibilidade de edição de súmulas, porém sem efeito vinculante, esta introduzida pela EC 45/2004 e regulamentada pela Lei nº 11.417/06.

3. Conceitos:
3.1. “Jurisprudência e Súmula. Distinção: Os efeitos do julgamento de uma lide se circunscrevem exclusivamente ao caso concreto, não podendo se irradiar para outras hipóteses, ainda que assemelhadas. Embora não vincule decisões em casos futuros semelhantes, a decisão anterior normalmente influencia as novas sentenças, ainda que proferidas por juízes diferentes, principalmente quando vai se reiterando de modo pacífico e uniforme. Aplica-se o brocardo ubi idem ratio, ibi idem jus (onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo direito). A reiteração uniforme e constante de uma decisão sempre no mesmo sentido, caracteriza o que se convencionou chamar jurisprudência. Em determinadas ocasiões, quando chega a surgir um consenso quase absoluto sobre o modo de se decidir uma questão, o tribunal correspondente pode sintetizar tal entendimento por meio de um enunciado objetivo, sintético e conciso, denominado "súmula", palavra originária do latim Summula, que significa sumário, restrito. A súmula nada mais é do que um resumo de todos os casos parecidos decididos daquela mesma maneira, colocado por meio de uma proposição clara e direta. A súmula, do mesmo modo que a jurisprudência ainda não sintetizada como tal, não possui caráter cogente, servindo apenas de orientação para as futuras decisões. Os juízes estão livres para decidir de acordo com sua convicção pessoal, mesmo que para tanto, tenha de caminhar em sentido contrário a toda a corrente dominante.” (Fernando Capez)
3.2. Súmula vinculante. “Com isso, uma súmula outrora meramente consultiva, pode passar a ter verdadeiro efeito vinculante, e não mais facultativo, não podendo ser contrariada. Busca-se assegurar o princípio da igualdade, evitando que uma mesma norma seja interpretada de formas distintas para situações fáticas idênticas, criando distorções inaceitáveis, bem como desafogar o STF do atoleiro de processos em que se encontra, gerado pela repetição exaustiva de casos cujo desfecho decisório já se conhece. Contra o tema, argumenta-se com a violação ao princípio da livre convicção e independência do juiz. De qualquer modo, como forma de não engessar a atividade do julgador, este poderá, constatando a ausência de similitude entre a matéria apreciada e aquela objeto de súmula, concluir pela presença de algum elemento diferenciador, o que o desobrigará a aplicar a súmula vinculante, desde que fundamentadamente.” (Fernando Capez)
4. Justificativa da CCJ do Senado Federal:
A CCJ do Senado Federal ao debater a PEC que redundou na EC 45/04, quanto ao presente tema, justificou a adoção da SV nos seguintes termos:
“...parece-nos evidente que a SV tende a promover os princípios da igualdade e da segurança jurídica, pois padronizará a interpretação das normas, evitando-se as situações propiciadas pelo sistema vigente, em que pessoas em situações fáticas e jurídicas absolutamente idênticas se submetem a decisões judiciais diametralmente opostas, o que prejudica em maior medida aqueles que não têm recursos financeiros para arcar com as despesas processuais de fazer o processo chegar ao STF, onde a tese que lhe beneficiaria fatalmente seria acolhida.”

5. Previsão legal: A SV encontra-se prevista no art. 103-A da CF88 que, expressamente dispõe:
“O STF poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao STF que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Convém relembrar que a Lei nº 11.417, de 19/12/2006, em vigor 3 (três) meses após sua publicação (20/12/2006), regulamentou o instituto.

6. Objeto: Ora, conforme podemos depreender pelo dispositivo constitucional transcrito acima, a SV tem por objeto a validade, a interpretação e a eficácia da norma. A validade significa a adequação da norma à CF88. Interpretação é a extração do real significado da norma. Já a eficácia é o atingimento, pela lei, de todos os efeitos pretendidos pelo legislador e anunciados na apresentação do projeto e em sua elaboração.

7. Requisitos:
A edição da SV está condicionada à presença simultânea dos seguintes requisitos:

7.1. Existência de controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública acerca da validade, da interpretação e da eficácia de normas determinadas;

7.2. Grave insegurança jurídica decorrente da aludida controvérsia;

7.3. Relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

8. Aspectos e procedimentos da edição, revisão ou cancelamento de SV:


8.1. Competência exclusiva do STF;

8.2. STF atua espontaneamente ou provocado;

8.3. Legitimados para provocar o STF: Mesmos da ADIn e da ADeCon, acrescidos do Defensor Público-Geral da União, dos Tribunais Superiores, de Justiça, Regionais Federais, Regionais do Trabalhos, Regionais Eleitorais e Militares. Também poderá proceder à referida provocação os Municípios, incidentalmente, no curso de processo em que seja parte;

8.4. A proposta de edição da SV não suspende o andamento de processo;

8.5. Nesse pedido poderá o Min. Relator autorizar a manifestação de terceiros (“amicus curiae”), por decisão irrecorrível;

8.6. O PGR deverá manifestar-se previamente, salvo se for o autor da proposta;

8.7. Exige quorum qualificado de 2/3 dos membros do STF (8 Min.);

8.8. Produzirá efeitos imediatamente à sua publicação, que deverá ocorrer até 10 (dez) dias da sessão que a editar, rever ou cancelar, salvo se decisão de 2/3 dos membros do STF, modular seus efeitos, restringindo-os e fixando outro momento para início de sua eficácia, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social.


9. Imperatividade e coercibilidade: Conforme visto acima a SV é de observância obrigatória pelos órgãos do Poder Judiciário e pela Administração Pública, dada sua imperatividade. Outrossim, caso decisão judicial ou ato administrativo negar-lhe vigência ou aplicá-la indevidamente, sua coercibilidade será implementada mediante reclamação ao STF que, julgada procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. Convém ressaltar que a SV não atinge a atividade típica do Legislativo, sob pena de configurar o “inconcebível fenômeno da fossilização da Constituição”, conforme entendimento esposado pelo Min. César Peluso na análise dos efeitos da ADIn (Rcl nº 2617, Inf. 386/STF).

10. Responsabilidade do administrador público: A Lei nº 11.417/06 introduziu o art. 64-B na Lei nº 9.784/99 (Processo Administrativo), prevendo a possibilidade de responsabilização administrativa, cível e penal do agente público que descumprir decisão do STF em reclamação fundada em violação da SV, mas não fixou nenhuma responsabilização aos magistrados, garantindo sua independência.
11. Súmulas vinculantes editadas: Até o presente momento o STF já editou 13 (treze) SV, conforme anexo. Algumas dessas SV causaram bastante polêmica, como por exemplo as de nº 5 (falta de defesa técnica no PAD), 11 (uso de algemas) e 13 (nepotismo).

12. Conclusão:
Confrontando a CF88, em especial seus art. 2º e 60, § 4º, III, não vislumbramos qualquer ofensa ao princípio da separação dos poderes. Aliás, é fácil verificar que pelo fato de não atingir a função típica do Poder Legislativo, este poderá alterar ou revogar a norma interpretada pela súmula e, portanto, controlar o exercício da edição pelo STF (“freios e contrapesos”). A questão é saber se nosso Poder Legislativo Federal encontra-se à altura para se desincumbir de mais essa atribuição?

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