quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL


1. Introdução:
Trata-se de tarefa de singular dificuldade, eis que toda interpretação sofre influência da visão particular do intérprete, o que, por si só, já revela ser instável o referido caminho. O filósofo Ortega y Gasset já indicava que “todo conhecimento, mesmo sendo racional, encontra-se enraizado na vida”. Outro grande filósofo, Karl Mannheim, informa que “o modo de enfocar o objeto que se trata de conhecer, depende também da natureza da pessoa que conhece”. O constitucionalista Manoel Jorge e Silva Neto, por seu turno, assevera que “a interpretação é um plano preconcebido de ação do homem tendente a modificar a realidade circundante através do pensamento, que constitui-se em pressuposto para o agir”. Cumpre, ainda, salientar que a interpretação da norma jurídica comum se distancia da interpretação da norma constitucional, eis que, conforme nos leciona Tércio Sampaio Ferraz Jr., a interpretação da lei fundamental “...se transforma num instrumento de realização política, com base na qual a legislação procurará concretizar princípios e programas implicitamente agasalhados pelo texto constitucional”.

2. Interpretação da norma comum: Cotidianamente, a todo momento, o ser humano interpreta os fenômenos que o cercam, o que revela que interpretar é ato essencial do pensamento humano (p. ex.: ao ver na rua um policial que disciplina o trânsito o observador/intérprete não irá lhe pedir um quilo de tomate, sob pena de sofrer indesejadas conseqüências). Por outro lado, para interpretar é necessário o conhecimento sobre o objeto da interpretação (p. ex.: uma criança, por não ter vivência do fato supra narrado, não saberia distinguir/interpretar corretamente a referida situação). Traduzindo para a interpretação de normas jurídicas, a mesma busca explicitar o real conteúdo da norma, o comportamento nela inserido, trabalho de enorme complexidade, para a partir daí criar condições para a tomada de decisões. Daí porque uma interpretação errônea da norma pode gerar decisões/ações nefastas para o indivíduo e para a sociedade.

2.1. Interpretação e Hermenêutica: A necessidade de interpretar tornou necessária a criação da hermenêutica (referência ao deus grego Hermes). Hermenêutica jurídica é a teoria da interpretação das leis (ciência) enquanto a interpretação é o processo concreto através do qual o intérprete extrai o valor da norma.

2.2. Limites:
Dir-se-ia que a atividade de interpretar uma norma jurídica estaria limitada pelos princípios da hermenêutica, no entanto, nos alerta Karl Engisch que “muito freqüentemente impera o arbítrio na escolha de um certo tipo de interpretação”.

2.3. A Única Interpretação Correta: Segundo Manoel Jorge e Silva Neto, a referida tese encontra dois grandes óbices lógico-metodológicos intransponíveis: “a) impossibilidade de existir uma “única”, “correta” e “verdadeira” interpretação, por estar o cientista do direito influenciado – antes, durante e após o trabalho interpretativo – por fatores não exclusivamente jurídicos, quer de natureza política, antropológica, econômica ou cultural, sendo que ditos fatores são legítimos e operam diferenciados efeitos sobre cada um que se propõe a interpretar a norma jurídica; e b) o conceito de verdade, segundo o idealismo lógico, significa “(...) a concordância do pensamento consigo mesmo”, concordância esta designadamente vinculada à ausência de contradições, o que torna “verdadeira” aquela interpretação tão-só desprovida de antinomias.”

2.4. Processos Clássicos: São critérios historicamente utilizados para a interpretação da norma. O mais clássico destes critérios é o literal, aquele fundado na análise gramatical: regras de lingüística (significado de cada vocábulo) e análise sintática (isolado ou em conjunto com a sentença, origem etimológica e pontuação), denominado “in principio erat verbum”. Por não permitir a interação imprescindível entre a norma, o fato e o valor, este critério foi mitigado pela hermenêutica jurídica moderna, que estabeleceu vários novos critérios de análise. No entanto, a interpretação gramatical, filológica ou literal, continua importante para que o intérprete possa aferir o sentido da norma, a partir do estudo e análise do processo de escrita legislativa utilizada pelo legislador, mormente em se tratando de normas constitucionais originárias ou derivadas. A interpretação constitucional passa pela lógica (Se A = B e B = C, logo A = C, ver CF, art. 1º, III), pela interpretação sistêmica (unidade da norma jurídica. Por ex.: CF, art 5º, LXXIII; art. 7º, XXI; art. 23, VI; art. 24, VII e VIII; art. 129, III; 170, VI; art. 174, § 3º; art. 186, II; art. 200, VIII; art 225, caput) e pela interpretação histórico-evolutiva (visa entendimento da norma constitucional sem atentar contra a inicialidade da constituição e sem descurar da interpretação voltada à época presente).

3. Técnicas de interpretação constitucional: Muito embora a interpretação constitucional adote regras tradicionais aplicadas às normas comuns, é inegável que tal estatuto jurídico, paradigma político-jurídico de validade de todo o ordenamento jurídico, necessita de técnicas próprias e específicas do direito constitucional. Daí dizer-se que carece de um método próprio, sob a idéia de que a aplicação da norma constitucional abrange os recursos a uma teoria da norma, a uma teoria da constituição e a uma dogmática jurídica.

3.1. Interpretação constitucional em sistema de common law: O sistema jurídico anglo-saxão, diferente do adotado pelo Brasil, adota normas constitucionais ditas de “textura aberta”, ou seja, com grande amplitude e elasticidade, constituindo-se em seara própria a uma constante interpretação constitucional, o que ocorre através da jurisprudência. Daí explicar-se o fenômeno da longevidade da CF dos EUA (1787), tendo sofrido poucas alterações em mais de 220 anos, eis que o “sistema construtivo-judicialista aberto daquele País exerce, por assim dizer, a tarefa de atualização do texto à realidade cambiante, encargo cometido ao poder constituinte de competência derivada em outros países”, conforme preleciona o constitucionalista Manoel Jorge e Silva Neto.

3.2. Neoconstitucionalismo e Técnicas de Interpretação Constitucional: Durante muito tempo as normas constitucionais foram interpretadas à luz das técnicas de interpretação das normas comuns, a chamada teoria normativa, mas com o tempo se percebeu a insuficiência do referido método, dada a inter-relação do direito constitucional com as demais disciplinas do próprio direito e com as demais ciências em geral (sociologia, economia, política, etc) tendo o neoconstitucionalismo pretendido superar o positivismo jurídico até então adotado, apresentando alguns caracteres próprios: oposição ao positivismo jurídico, proposta de hermenêutica constitucional com nova concepção de norma jurídica, máxima efetividade das normas constitucionais, visão do direito como instrumento de transformação da realidade, etc.


3.2. Neoconstitucionalismo e Técnicas de Interpretação Constitucional: Durante muito tempo as normas constitucionais foram interpretadas à luz das técnicas de interpretação das normas comuns, a chamada teoria normativa, mas com o tempo se percebeu a insuficiência do referido método, dada a inter-relação do direito constitucional com as demais disciplinas do próprio direito e com as demais ciências em geral (sociologia, economia, política, etc) tendo o neoconstitucionalismo pretendido superar o positivismo jurídico até então adotado, apresentando alguns caracteres próprios: oposição ao positivismo jurídico, proposta de hermenêutica constitucional com nova concepção de norma jurídica, máxima efetividade das normas constitucionais, visão do direito como instrumento de transformação da realidade, etc. A seguir as técnicas (ou métodos) de interpretação que instrumentalizam o neoconstitucionalismo no campo da hermenêutica constitucional:

3.2.1. O Método Tópico e a Interpretação Constitucional: Consiste, em apertada síntese, no método para solucionar problemas concretos e apontar uma solução possível, dentre as opções existentes, como por exemplo, quando no processo judicial o magistrado analisa a tese (autor) e a antítese (réu) decidindo como aplicar a norma no caso concreto (síntese). Segue um caminho (etapas) que, na seara constitucional, pode ser resumido pelas seguintes proposições: o caráter prático da interpretação constitucional visando solucionar um problema concreto; o caráter aberto da norma constitucional; preferência pela discussão do problema face à textura aberta das normas constitucionais. Sofre críticas, primeiramente de que ao partir do caso concreto para delimitar o alcance da norma constitucional, quando o que se espera de uma norma é que seu conteúdo seja abstrato, estaria inviabilizando a reforma constitucional pelo procedimento interpretativo. Por outro lado, Paulo Bonavides, entre outros, alerta que “...a Constituição, que já é parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com a metodologia dos problemas concretos, decorrentes da aplicação da hermenêutica tópica”. Prossegue o renomado constitucionalista: “...o surto de preponderância concedido a elementos fáticos e ideológicos de natureza irreprimível é capaz de exacerbar na sociedade, em proporções imprevisíveis, o antagonismo de classes, a competição dos interesses e a repressão das idéias”. Guilherme Peña de Moraes o define como Método Tópico-Problemático, proposto por Theodor Viehweg.



3.2.2. A Interpretação Constitucional e o Pensamento Possibilista de Häberle: Para esta corrente de interpretação a norma constitucional não é um trabalho perfeito e acabado em si mesmo, tratando-se de “pura possibilidade jurídica” a ser confrontada com a realidade. Busca a correta dosimetria entre a realidade, a possibilidade e a necessidade, cumprindo ao intérprete harmonizar tal relação.

3.2.3. A Semiologia: Trata-se do estudo dos signos utilizados no Direito visando extrair o sentido desejado pela norma constitucional. Busca, através dos sistemas sígnicos (sintático, semântico e pragmático) discernir o suporte físico (canal material condutor da mensagem referente a um objeto da vida), o significado (a realidade exterior expressa pelo signo) e a significação (idéia ou conceito gerado no pensamento do receptor) de cada signo. Por exemplo: Quando alguém fala a palavra avião, este signo é transmitido pelo emissor através das ondas sonoras de sua voz e, ao ser captada pelo receptor, infunde na mente deste, imediatamente, o seu significado (meio de transporte aéreo com asas) e a partir daí o leva a inferir uma significação (meio perigoso ou caro). Trata-se de mais um instrumento de investigação posto à disposição do intérprete pois, considerando-se que o direito é, a um só tempo: norma, fato e valor (tridimensional), não se poderia converter a Filosofia do Direito em mera teoria da linguagem do legislador, conforme nos ensina Miguel Reale, que aduz que “o objeto de estudo do jusfilósofo é a experiência jurídica na integridade de sua estrutura fático-axiológico-normativa, enquanto geradora de modelos e significados jurídicos”.

3.2.4. Técnica da Ponderação de Interesses: É ligada à noção de Justiça. Ponderação implica sopesar, medir, estabelecer relação de equilíbrio. É utilizada quando há conflito ou colisão entre princípios ou entre direitos fundamentais, buscando sua concordância prática ou cedência recíproca, conforme princípio a ser abordado a seguir.

Convém alertar que outros autores apontam outros métodos, como por exemplo: o Método Científico-Espiritual de Rudolf Smend, o Método Normativo-Estruturante de Friedrich Muller ou o Método Hermenêutico-Concretizador de Konrad Hesse.


3.3. Princípios de Interpretação Constitucional: Na busca do sentido da norma constitucional, o intérprete tem à sua disposição, também, uma série de princípios que poderão facilitar sua árdua tarefa eis que, um princípio, na ótica de Celso Antônio Bandeira de Mello, “...é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. Os princípios, portanto, modelam vigorosamente o ordenamento jurídico, cumprindo ainda o papel de ferramenta de interpretação posta à disposição do jurista. Podem estar positivados ou não, despontando como importantes vetores interpretativos na busca do sentido da norma, para solução de inevitáveis controvérsias. No que tange à interpretação constitucional e sem querer esgotar o rol de princípios enumerados na legislação, na doutrina e na jurisprudência, em particular do STF, podemos citar os seguintes:

3.3.1. Princípio da Unidade: Parte da premissa de que se a Constituição é a lei fundamental do Estado, localizada no ponto mais alto do ordenamento jurídico, a interpretação da mesma deve preservar sua unidade de sentido, impedindo o surgimento de suposta antinomias. No dizer de Canotilho “...obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão...existentes entre as normas a concretizar...como preceitos integrados num sistema unitário de normas e princípios”.

3.3.2. Princípio da Concordância Prática: Também chamado da cedência recíproca, complementa o princípio da unidade, pela utilização de um meio de coordenação proporcional entre os diversos bens constitucionalmente tutelados. Por exemplo: CF, art. 5º, XXII (direito de propriedade) e art. 225, § 4º (limitações).

3.3.3. Princípio do Efeito Integrador: Parte do pressuposto de que uma constituição visa criar e manter a unidade política de um Estado, logo deverão prevalecer as interpretações que busquem atingir a unidade estatal, para a solução dos problemas jurídico-constitucionais encontrados.

3.3.4. Princípio da Correção Funcional: Tem como cerne da atividade interpretativa o respeito à forma como foi promovida a divisão de atribuições dos órgãos do Estado pelo constituinte originário. Exemplo: CF, art. 2º (separação de poderes).

3.3.5. Princípio da Interpretação Conforme a Constituição: Está ligado ao princípio anterior na medida em que busca acatar o sistema criado pelo Poder Legislativo ao criar as leis, bem como sua observância conduz a um relacionamento harmônico entre as funções estatais. Visa evitar a declaração de inconstitucionalidade de uma norma infraconstitucional, levando o Poder Judiciário (STF) à escolha de uma interpretação que possa conduzir à compatibilidade da lei à Constituição, desprezando-se as demais.

3.3.6. Princípio da Coloquialidade: Parte da realidade de que uma constituição é confeccionada pelos constituintes para ser compreendida por todos os integrantes da sociedade e que não são, obviamente, conhecedores da ciência jurídica, daí suas normas serem construídas com o viés da coloquialidade porque as expressões inseridas no texto constitucional, por vezes, transcendem o sentido técnico-jurídico que comumente teriam.

3.3.7. Princípio da Máxima Efetividade: Também chamado de princípio da eficiência, diz respeito à escolha de uma interpretação que confira o máximo de efetividade às normas constitucionais que se encontrem em aparente conflito.

3.3.8. Princípio da Proporcionalidade: Assume três acepções na ciência do direito constitucional: necessidade do legislador editar leis menos restritivas aos direitos e garantias fundamentais, obrigatoriedade do aplicador do direito escolher a solução judicial que menor redução imponha a tais direitos, ônus relativos à norma expedida devem ser suportados proporcionalmente por todos os membros da comunidade política. Exemplo: CF, art. 17 e Lei nº 9.504/97, art. 10, § 2º (vide julgamento da ADIMC nº 1.813/DF).

3.4. Conclusão: A interpretação da Constituição de um Estado deve sempre buscar o real significado dos termos constitucionais. Esta atividade é extremamente importante, na medida em que a Constituição dará validade para as demais normas do ordenamento jurídico. A interpretação deverá levar em consideração todo o sistema e, em caso de antinomia de normas, buscar-se-á a solução do aparente conflito através de uma interpretação sistêmica, orientada pelos princípios constitucionais (hermenêutica constitucional). Devemos lembrar que existem métodos científicos para a interpretação constitucional, bem como não podemos descurar da utilização dos chamados princípios de interpretação constitucional, acima citados, dentre outros. A chamada reforma constitucional ou modificação do texto constitucional, pode se dar por intermédio dos mecanismos definidos pelo poder constituinte originário (emendas constitucionais de revisão e de reforma), alterando, suprimindo ou acrescentando normas ao texto original. As mutações constitucionais, por sua vez, não se tratam de alterações físicas, mas apenas no significado e sentido interpretativo de um texto constitucional ocorrendo quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) modifica a interpretação de uma norma constitucional sem que haja qualquer alteração em seu texto, daí a necessidade da exata compreensão deste fenômeno.

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