quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Filosofia


1- Introdução

“O medo da especulação, a fuga ostensiva do teórico para o prático, produz a mesma superficialidade na ação e no conhecimento. É através do estudo de uma filosofia estritamente teórica que nós nos tornamos imediatamente familiarizados com idéias, e só idéias podem dar à ação energia e significação ética” (Schelling, 1802, em aula sobre o método de estudo acadêmico).

2- O que é Filosofia?

- Surgimento da filosofia: surgiu quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade, insatisfeitos com as costumeiras e tradicionais explicações do mundo, buscaram, por meio de perguntas diversas, respostas oferecidas pela razão humana, que, por sua vez, se mostrou capaz de conhecer o mundo, os seres humanos, as ações dos seres humanos, os acontecimentos naturais e as coisas da natureza. A razão se mostrou, ainda, capaz de conhecer-se a si mesma. Pitágoras de Samos (V a.C) inventou a palavra “filosofia”. A sabedoria plena pertence aos deuses, mas os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos. Dos gregos vieram as bases e os princípios fundamentais do que nós, ocidentais especialmente, chamamos razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica, arte.
- Ser filósofo: inquietude e amor ao saber.
- A questão da verdade: a noção de verdade pode ser compreendida sob dois aspectos bem diferentes que freqüentemente são confundidos pelo investigador inexperiente ou pelos leigos em geral. Verdade é um atributo de uma proposição de caráter lógico cujo oposto seria a falsidade. A verdade também nos leva a considerar como tal tudo o que guarda conformidade com a realidade, algo que se apresente como um dado verossímil e “inquestionável”, e seu oposto seria a ilusão, o irreal, a mentira.
- Busca das causas últimas, essenciais. Questões universais
- Tempo, espaço, razão, sensações, moral. Causalidade
- Atitude filosófica – problematização dos objetos de crença comum
- Questionamento e posicionamento crítico

- O exemplo de Sócrates: questionamento e perseguição pelos poderosos de Atenas

3- Para que Filosofia?

- A espera de utilidade prática nos coloca essa pergunta.
- Comumente se associa à ciência sua utilidade nos produtos da técnica.
- A filosofia é útil? Geralmente (comumente) se entende como útil algo que dê poder, prestígio, riqueza, tudo cujo resultado seja visível.
- Objetivos filosóficos: verdade, pensamento racional, aplicação prática de conhecimentos teóricos, correção e acúmulo de saberes. Os cientistas partem de coisas sabidas, mas quem as propõe é o exercício filosófico.


4- Pensamento filosófico como sistema

- Sistema: encadeamento lógico entre assertivas; operações por demonstração, fundamentação e prova.
- Conjunto coerente de idéias e significações.
- Validade das questões. Verdade contrastável.

5- Os conhecimentos poético, mitológico, religioso e filosófico

- O conhecimento: início na intuição sensível (ato de apresentação ou percepção da realidade); o segundo passo na memória (lembrar o que foi trabalhado a partir do que esteve disponível na percepção sensível); o terceiro passo na experiência (síntese ordenada do material das instituições sensíveis e da memória. Ponto de partida para a produção artística e científica).
- O conhecimento poético: tipo de conhecimento artístico, expresso por meio de motivação sensível. Não há compromisso científico estreito. Uso corrente de metáforas capazes de aguçar a assimilação sensitiva. A aparência (dos objetos, pessoa, das forças naturais) inebriava o sentimento dos antigos gregos e eles a celebravam nos mitos de Dionísio e Apolo, nos cantos, na poesia e na arte. A poesia exprime os sentimentos e as coisas inerentemente humanas. Homero, da Ilíada, por exemplo, foi um poeta, um indivíduo que registrava poeticamente os mitos gregos, já de sapiência geral pela tradição.
- O conhecimento mitológico: 1) o vocábulo mito vem do grego “mythos”, que significa “contar”, “narrar” alguma coisa. Ajuda a esclarecer a existência humana no mundo, representando uma forma autônoma e persistente (às investidas científicas) de pensamento. É o conhecimento que contém o imediato da experiência numa unidade fantástica de difícil acesso (só o pensamento o alcança, nunca o discurso de filosofia e nem o de ciência). Os relatos míticos firmam os elos de aliança dos homens entre si e com seu meio ambiente. Necessidade humana de afinação com o concreto, com a ligação natural existente entre os homens, anterior à ciência. É o que ocorre, por exemplo, nas comunidades indígenas, conforme apontam os antropólogos. 2) Para os gregos, mito é um discurso proferido por uma pessoa a quem os ouvintes atribuem confiança (quanto à veracidade) e autoridade. A narrativa é baseada na confiança que se atribui à pessoa do narrador, que era o poeta-rapsodo, pessoa que recebia mensagens dos deuses, por isso incontestáveis (verdade revelada, por isso mesmo comporta o fabuloso, o contraditório). Ex: mito do filho da Deusa PENÚRIA (faminta e miserável) e do Deus POROS (engenhoso), que é o cupido, EROS, caracterizado por sua engenhosidade, mas também sua miséria e desânimo, por causa do amor. A forma de explicitação da realidade pelo pensamento mítico apela ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado e à magia.
Importante destacar que o mito não é apenas simples história fantástica que, ao representar certo fenômeno da natureza (sol, chuva, trovão), ou determinado sentimento humano (amor, justiça, sabedoria), se mantém como representação banal. Para alguns filósofos e antropólogos
o mito acaba por formar uma estrutura permanente e referencial ao pensamento e à ação humanas (ex: mito do herói. Desde a antiguidade as comunidades retratam e exaltam a figura do herói, a pessoa que sai de sua esfera de conforto, onde todos a amam incondicionalmente – família e terra natal – e anda “pelo mundo” em busca de superações, enfrentando todos os desafios e terminando um vencedor reconhecido. Em nossa sociedade este mito ainda é bem vivo, pois todos nós ao fundo buscamos reconhecimento alheio após passarmos por provações diversas – ganhar dinheiro, ter um bom emprego, vida social, etc.).
- O conhecimento religioso: trabalhado na base da fé, da confiança, da revelação. A verdade não é contestável. Pressupõe-se a existência de forças que estão além da capacidade e da compreensão do homem, instâncias divinas consideradas criadoras de ‘tudo o que existe”. A religião se expressa por meio de doutrinas, preceitos éticos e rituais sagrados. Conhecimento misterioso, oculto, muitas vezes incapaz de ser explicado. Atos que nascem de manifestação de vontade do criador. Predestinação, culpa, pecado, determinismo. A fé estará sempre ligada a imagens (materialização) ou/e a determinada pessoa que revele os mistérios divinos (Jesus, Matinho Lutero, Allan Kardec).
- O conhecimento filosófico: uma forma de pensar, uma postura de reflexão diante do mundo. Não se apresenta como um sistema pronto de verdades. Há assertivas contrastáveis e construção epistemológica estrutural e sistemática. (filosófico-científico). Filosofar significa refletir criticamente sobre alguma coisa. Ir além da aparência. Podemos aplicar a filosofia a outras áreas do conhecimento, como o Direito, por exemplo.
- O conhecimento científico: esse conhecimento vai muito além do conhecimento do senso comum. Por intermédio de um método de análise podemos conhecer e investigar os objetos, os fatos, as coisas, a partir de suas causas, efeitos e leis próprias. Mas há a falibilidade científica. Leis da ciência. Crença na ciência.


Filosofia – conceitos


“Conhece-te a ti mesmo” (Nosce te ipsum) – escrita na porta do Santuário do Deus Apolo (Deus da luz e da razão), local em que Sócrates consultou o oráculo. O filósofo perguntou–lhe a razão pela qual todos os atenienses o consideravam sábio. O que é um sábio? O oráculo, então, perguntou a Sócrates o que ele sabia, ao que respondeu: “sei que nada sei”. Por essa resposta, Sócrates foi, assim, considerado o mais sábio de todos os homens, pois era o único que sabia que nada sabia, que estava sempre aberto para o caminho investigativo da verdade. Sócrates: o patrono da filosofia.


6- Conceitos de filosofia

- O filosofar existe desde os primórdios, desde o surgimento do homem. No Oriente já se exercitava a filosofia. Mas, historicamente, costumamos a estudar o Ocidente. E o marco histórico foi com Pitágoras, que disse não ser sábio, mas “apenas” filósofo.
- A filosofia pode receber inúmeras conceituações, tanto simples, quanto mais elaboradas. Em virtude de sua complexidade, impende-se ressaltar que seu enfoque pode se dar sob vários aspectos, como, por exemplo, busca do saber (critério nominal), cosmovisão (critério global), crítica das ciências (critério dos postulados), conhecimento das primeiras causas e dos supremos princípios da existência (critério causal) e estimativa ou crítica da vida (critério axiológico – relativo a valores). Nenhum desses critérios, utilizados isoladamente, é satisfatório para iluminar e dar sentido à filosofia.
- A filosofia é o esforço intelectivo mais profundo acerca dos fenômenos pelos quais a Realidade se manifesta; é o estudo das primeiras causas e dos supremos princípios da essência, do porquê e do para quê do englobante (a totalidade da existência e sua razão de ser).
- Tríplice dimensão: o Homem (caminhante), a Realidade Absoluta (origem, meta e destino), e a Verdade (caminho possível).
- Antropocentrismo: a filosofia cuida prioritariamente do sujeito e suas relações. “O homem é o limite de todas as coisas”.
- Marilena Chauí oferece uma conceituação de fácil assimilação do que é a filosofia, ou, analogamente, o ato de filosofar: “a decisão de não aceitar como naturais, óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana: jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido” (in: Convite à Filosofia, 13 ed. Ática: SP. P. 17/18).

7- O surgimento da filosofia na Grécia antiga

- No ocidente, a filosofia, enquanto conhecimento organizado e metódico, se inicia na antiga Jônia, província da Ásia Menor, por volta do século VI a.C. A Jônia (colônia grega do Mediterrâneo Oriental, afastado geograficamente de Atenas, da Grécia) é o berço dos pré-socráticos, os primeiros filósofos ocidentais. Havia outros povos da Antiguidade que explicavam de seus modos próprios os fenômenos naturais, mas os gregos foram os primeiros a fazer ciência (pensamento filosófico-científico).
- Aristóteles se refere a Tales de Mileto (pré-socrático), como o primeiro filósofo (in: Metafísica, livro I).

8- Noções fundamentais do pensamento filosófico-científico

- Essas noções são ponto de partida para uma nova visão de mundo:
- A physis: natureza. Aristóteles denominou physiólogos os primeiros filósofos por serem teóricos ou estudiosos da natureza, como o objeto de investigação. Perquirem uma explicação causal dos processos e dos fenômenos naturais a partir de causas puramente naturais, isto é, encontráveis no mundo concreto.
- A causalidade: conexão causal entre determinados fenômenos naturais – forma básica da explicação científica.
- Fenômenos: as formas pelas quais a realidade se manifesta. O fenômeno é uma forma de se ver a realidade. Kant diz que o nômeno, a coisa-em-si, nunca pode ser conhecida.
- A arqué (elemento primordial): serve para evitar que pelo regresso causal se torne infinito, ou se atribua o apoio inicial a uma causa mítica. A arqué é o elemento primordial que serviria de ponto de partida para todo o processo. Tales de Mileto disse ser a água (hydor) o elemento primordial. O que importa na escolha desse elemento primordial é a capacidade de, a partir dele, se atribuir unidade à natureza (tudo o que existe contém água). Na Escola de Mileto, outros filósofos atribuíam a outros elementos a característica em pauta: Anaxímenes (ar), Heráclito (fogo), Demócrito (átomo), Empédocles (os 4 elementos). Em suma, os filósofos queriam apresentar uma explicação da realidade em um sentido mais profundo, estabelecendo um princípio básico (e natural) que permeie toda a realidade.
- O cosmo (o universo racionalmente ordenado): liga-se à idéia de ordem, harmonia e mesmo beleza (harmonia das formas - cosmético). A idéia de cosmo é, portanto, a de uma ordenação racional, uma ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos, e que se constitui de forma determinada, tendo a causalidade como lei principal. O contrário é o caos, desordem. É a racionalidade deste mundo que o torna compreensível. Presentes nas investigações dos pré-socráticos: Cosmologia (estudo da constituição do mundo e de como ele está ordenado); e Cosmogonia (estudo das origens do mundo).
- O logos: o termo significa literalmente discurso. Mas esse discurso é diferente daquele despendido na difusão do mito. O logos é fundamentalmente uma explicação, em que razões são dadas. O discurso dos primeiros filósofos, que utilizavam as causas naturais como explicação, é um logos. É formado pelo pensamento humano aplicado à natureza. O logos é, dessa sorte, o discurso racional, argumentativo, em que as explicações são justificadas e estão sujeitas à crítica e à discussão (daí deriva o termo lógica).


Os filósofos pré-socráticos e os sofistas


9- Os filósofos pré-socráticos (final do século VII até o final do século V a.C)

- São assim denominados os antecessores de Sócrates, filósofo de suma importância (tomado, assim, como marco) porque introduz uma nova problemática na discussão filosófica, as questões ético-políticas (problemática humana e social).
- Suas idéias mostram que eles não pensavam que a realidade se centrasse, necessariamente, nos seres humanos (como no caso dos mitos e poemas épicos). Para eles, as pessoas não passavam de uma pequena parte do quadro. Eles estavam preocupados com a cosmologia e a cosmogonia, investigadas, em princípio, a partir de elementos naturais primordiais (monismo).
- A filosofia pré-socrática, suas primeiras teoria sobre a realidade, não são “científicas” no sentido atual da palavra. Ou seja, elas não resultam de testes experimentais e observação controlada. Mas elas são impessoais e apresentam regras para o material da realidade e como ela está organizada. Os filósofos pré-socráticos, como os “primeiros filósofos” (segundo estudo ocidental), apresentaram teorias, em vez de histórias, para responder às suas perguntas.
- As obras dos pré-socráticos, escrita, se perderam na Antiguidade. Só conhecemos a filosofia deles em função da doxografia (sínteses e comentários tecidos por filósofos posteriores) e dos fragmentos (pedaços selecionados por filósofos posteriores).
- De todo modo, a filosofia na época dos pré-socráticos era mesmo mais falada (discussão) do que escrita.

10-As duas grandes correntes: Escola Jônica e Escola Italiana

- Escola Jônica: caracterizada, sobretudo, pelo interesse pela physis, pelas teoria sobre a natureza (ex. Tales, Heráclito, Anaximandro, Anaxímenes).
- Escola Italiana: caracteriza-se por uma visão de mundo mais abstrata, menos voltada para uma visão naturalista da realidade (ex. Pitágoras, Parmênides).
- Segunda fase do pensamento pré-socrático (fase pluralista). Ex. Empédocles, Leucipo, Demócrito.
Os filósofos pré-socráticos mais importantes:
- Tales de Mileto: considerado o primeiro filósofo (pensamentos filosófico-científico); buscava explicações naturais para os fenômenos. Ou seja, a explicação para a realidade natural a partir dela mesma, sem nenhuma referência ao sobrenatural ou ao misterioso. Formulou a doutrina da água (hydros) como elemento primordial, a partir do qual tudo se desenvolvia. Em sua doutrina se via presente o caráter crítico, o que explica a adoção, por seus discípulos, de outros princípios explicativos contrários aos seus postulados.
- Anaximandro: Discípulo de Tales. O elemento primordial, para ele, não era nenhum dos conhecidos 4 essenciais. O elemento por ele estabelecido era o apeíron (ilimitado, indeterminado), o primeiro princípio. Diogo Marcondes diz que essa noção nova traduz um esforço na direção de uma explicação mais abstrata ou genérica do real, uma primeira versão da noção de matéria: todas as coisas nascem do apeíron e todas as coisas voltam para o apeíron (Einstein – a matéria não pode ser criada, nem destruída).
- Anaxímenes: Provavelmente discípulo de Anaximandro, adotou o ar (pneuma) como arqué, uma vez que o ar é incorpóreo e se encontra em toda parte. Pode-se ver, nisso, uma tentativa de encontrar, num elemento incorpóreo, uma explicação abstrata da realidade física.
- Pitágoras: “Pitágoras de Samos”. Nasceu em Samos, na Jônia, mas emigrou para a Itália. Formou em Crotona sua Escola, calhando por representar uma transição do pensamento jônico para o da escola italiana. Representa a permanência de elementos místicos e religiosos no pensamento filosófico. Ele acreditava, inclusive, na imortalidade da alma. Para Pitágoras, o número é o elemento básico explicativo da realidade, podendo-se constatar uma proporção em todo o cosmo, o que explicaria a harmonia do real garantindo o seu equilíbrio. O número, aqui, deve ser entendido como “estrutura e relação proporcional entre os elementos que compõem as coisas” (CHAUÍ, 2005, p. 40). Tudo poderia ser “explicado” por meio de teoremas matemáticos e fórmulas. O princípio geométrico de proporção influenciou também a estética grega (de harmonia cósmica), nas esculturas e na arquitetura. Tétrade (1+2+3+4=10): dez é a própria natureza do número. A escola Pitagórica resistiu na Antiguidade por quase dez séculos. Teorema de Pitágoras: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos, num triângulo retângulo (daí se obtém uma noção de harmonia que o filósofo tentava demonstrar). A harmonia retirada do som das harpas surgia do toque de cordas cujos comprimentos resultassem de razões simples uma das outras (como no violão, uma corda maior tocada com o terço, a metade, o quarto dela).
- Heráclito: “Uma coisa preferem os melhores a tudo: a glória eterna às coisas perecíveis, mas a massa empanturra-se como o gado” (fragmento 29 de sua obra). Como os atomistas, acredita que a realidade natural se caracteriza pelo movimento. É um dos principais representantes do mobilismo (todas as coisas estão em fluxo – Panta rei – Tudo passa). A unidade básica da realidade está na pluralidade (“unidade dos opostos” – realidade marcada pelo conflito entre os opostos, num sentido positivo, constituindo a garantia do equilíbrio). Assim, dia e noite, calor e frio, vida e morte, são opostos que se complementam. O fogo é adotado como elemento primordial, fogo enquanto chama, energia que se queima, se autoconsome dinamicamente. A “realidade como um rio corrente”. Segundo Hegel, o primeiro filósofo a desenvolver um pensamento dialético, de complementaridade, e não anulabilidade, entre opostos (embora Heráclito não tenha usado o termo ‘dialética’ – o primeiro foi Platão – in: MARCONDES. Iniciação à História da Filosofia, 2005, p. 36).
- Nota: O movimento das coisas e do mundo, para esses filósofos, se chama devir. Enquanto a physis permanece constante, as coisas mudam em direção ao seu contrário por uma força natural dinâmica (o branco amarela, o novo fica velho, o doente cura, e assim outras coisas). O devir segue leis rigorosas que o pensamento conhece, é a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário e essa passagem não é caótica, mas obedece a leis determinadas pelo princípio fundamental do mundo (com esteio na physis). Sobre esse assunto, ver pgs. 39/40 do livro da CHAUÍ (Convite à Filosofia, ed. Ática, 2005).
- Parmênides: Ele e os eleatas contrapõem-se ao pensamento mobilista, são monistas, ou seja, doutrinam a existência de uma realidade única. Parmênides foi o introdutor de umas das distinções mais básicas do pensamento filosófico, a distinção entre realidade e aparência. O movimento é apenas aparente, por detrás dele há uma realidade única, eterna, imutável, sem princípio nem fim, contínua e indivisível, incausada e causante de tudo o quanto existe (Uno), que pode ser descoberta pelo pensamento se formos além de nossa experiência sensível. Através do pensamento devemos, então, buscar a essência do real, aquilo que permanece na mudança. Afinal, só podemos entender a mudança se há algo de essencial que permanece e me permite identificar o objeto como o mesmo (a noção de permanência é mais básica que a de movimento). O essencial é o ser, e o fugaz, o mutável, é o não-ser (pois pode vir a não ser, pela mutabilidade). “É o mesmo ser e o pensar”, o que quer dizer que a racionalidade do real e a razão humana são da mesma natureza, o que permite o homem pensar o ser (pelo caminho da verdade, afastando-se conhecimentos fugazes, hábitos, impressões sensíveis). Parmênides foi considerado o pensador do Ser, e quem inaugura a metafísica (pensamento do ser que se opõe á experiência concreta, sensível, imediata, ilusória).
- Empédocles: Combinava, como Pitágoras, o espiritual e o científico (no seu caso a medicina, não a matemática). Segundo sua teoria, não havia apenas um elemento no centro de tudo, mas as raízes dos quatro elementos (água, fogo, terra e ar), em graus diferentes. Em uma variação grega antiga da crença do yin/yang sobre a existência dos opostos complementares, ele acrescentou que as entidades chamadas Amor e Luta são complementares.
- Leucipo: Fundador do atomismo. O último e mais maduro fruto da pesquisa naturalista iniciada pela Escola de Mileto. Alguns historiadores negam a sua existência (Epicuro), outros dizem que sua doutrina se fez presente nas obras de seu discípulo Demócrito.
- Demócrito: Também atomista, seus escritos se confundem com os de Leucipo. Há quem diga que ele foi o maior naturalista de seu tempo. De todo modo, o atomismo foi uma das doutrinas pré-socráticas de maior influência em toda a Antiguidade. Segundo a doutrina, a realidade consiste em átomos e no vazio, os átomos se atraindo e se repelindo, e gerando com isso os fenômenos naturais e o movimento. Os átomos têm forma geométrica variada, se repelem os de formas diferentes e se atraem os de formas semelhante. Os átomos são imperceptíveis e existem em número infinito. Todos eles são animados de um movimento espontâneo, pelo qual se chocam e ricocheteiam dando origem ao nascer, ao perecer e ao mudar das coisas. Essa teoria antecipa de modo surpreendente a física atômica contemporânea que deriva da noção de átomo dessa tradição, ressalvadas, claro, as devidas diferenças e proporções. Hoje, todavia, a física quântica postula a existência de partículas menores que o átomo. A ética de Demócrito, por seu turno, nada tem a ver com a teoria atômica. Para ele, nesse campo, o bem mais elevado para os seres humanos é a felicidade, e esta não reside na riqueza, mas somente na alma. Não são os corpos e a riqueza que nos tornam felizes, mas sim a justiça e a razão, e aí onde falta a razão, não se sabe fruir a vida nem superar terror da morte.

11- Os sofistas (período socrático)

- São os mestres da retórica e oratória, muitas vezes mestres itinerantes, que percorriam as cidades-estado fornecendo seus ensinamentos, sua técnica, suas habilidades aos governantes e aos políticos em geral (principalmente aos de Atenas).
- Exerciam o ofício em troca de dinheiro, o que motivou inúmeras críticas voltadas à máxima de que não se pode cobrar pelo que se adquiriu graciosamente.
- Platão, assim como Sócrates, os odiava. Pragmáticos, muitas vezes advogavam o esquecimento das questões Universais (bastante caras à filosofia platônica, por exemplo) em prol de resultados práticos na realidade vivida. Muitas vezes amoldavam aos seus interesses, e aos interesses políticos, os ensinamentos filosóficos então conhecidos.
- O termo sofisma é utilizado de forma pejorativa em nossos tempos. Há quem diga que os sofistas atuais são os gurus da auto-ajuda. Os sofistas eram mais oradores motivacionais do que filósofos. Em troca de um preço, uma taxa, eles auxiliavam os indivíduos a usarem as ferramentas da retórica e as habilidades de debate para melhorar a carreira.
- Os sofistas possuíam poderes impressionantes de persuasão e os jovens ambiciosos pagavam para ver essas habilidades. “Eram celebridades imensamente populares e influentes” (MANNION, James. O livro completo da filosofia, p. 25). Os sofistas mesmos não eram líderes atenienses, nem mesmo cidadãos, eram estrangeiros provincianos cujo gênio ultrapassava os confins de suas cidades natais menores (GUTHRIE apud BITTAR, 2001, P. 51).
- Aos olhos de Sócrates, Platão e Aristóteles, o problema é que os sofistas não lidavam com noções de Verdade, Beleza, Lógica e outras dessa estirpe. Pregavam receitas bastante “terrestres” para encontrar a felicidade, o romance e o sucesso na antiga Atenas (mesmo assim muitos cidadãos comuns alcançaram habilidades valiosas com a ajuda dos sofistas).
- Precursores do humanismo (e direitos humanos, por conseqüência – valores conforme as necessidade humanas) e do relativismo (valores relativizados convenientemente conforme o discurso e a intenção do orador), tiveram influência positiva no que concerne a uma determinada preparação do cidadão para a participação na vida política. São por vezes reconhecidos, também, como educadores (pedagogos).
- Dessa forma, há os que defendem a vantagem dos sofistas: eles ajudaram na formação e preparação política dos cidadãos gregos. Suas idéias eram, por isso mesmo, pragmáticas. Pois não havia outra instância a recorrer senão a opinião para as decisões na vida prática, “as quais deveriam ser tomadas com base na persuasão a fim de produzir um consenso em relação às questões políticas. Tipicamente, em uma discussão na Assembléia ninguém detinha a verdade em um sentido completo e absoluto, simplesmente porque isso não seria possível; mas todos tinham suas razões, seus interesses seus objetivos, procurando defendê-los da melhor forma possível (...) para que se pudesse produzir um consenso” (sobre Protágoras, in MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da Filosofia, 2005, p. 43).
- Os sofistas foram importantes, ainda, por terem levado a técnica para a dominação do discurso em assembléia e pela rediscussão da dimensão do homem como ponto de partida para as especulações humanas. A aparição dos sofistas veio preencher uma necessidade da democracia ateniense, onde o espírito de competição política e judiciária exigia uma preparação intelectual cada vez mais completa (BITTAR, 2001, p. 53).
- Na democracia ateniense as palavras tornaram-se o elemento primordial para a definição do justo e do injusto. A técnica (techné) argumentativa faculta ao orador, por mais difícil que seja sua causa jurídica, suplantar as barreiras dos preconceitos sobre o justo e o injusto e demonstrar aquilo que aos olhos vulgares não é imediatamente visível. Essa característica se faz presente ainda hoje nos discursos jurídicos, principalmente os erguidos em audiências e tribunais populares, sem esquecer daqueles escritos em petições.
- As experiências jurídicas, nesse contexto, aproximam-se do casuísmo relativista que só pode definir a justiça ou a injustiça do caso diante da análise de sua situação concreta, de sua ocorrência efetiva, de sua apreciação imediata. Isso favorece o desenvolvimento do discurso judiciário.
- Justiça a serviço dos interesses: com o discurso jurídico, dependendo da oratória do falante, por força de sua expressão oral, a noção de justiça é relativizada. Assim ocorre, também, no plano legiferante (o fazer das leis), pois as normas podem resguardar interesses de conveniência de determinado grupo da sociedade. E quando se tem, num sistema positivista, a noção de que a lei reflete justiça, o sentido de justiça torna-se relativo (o que vai de encontro à noção transcendente do justo defendida por Platão – a justiça como valor perene, imutável, ideal – como veremos em aulas seguintes).
- A emergência do discurso na democracia grega albergou a intenção sofística, permitiu a proliferação de escolas de ensino de técnicas de retóricas, a construção de práticas políticas e jurídicas que requeriam a sapiência de recursos persuasivos. Contudo, no século IV a.C. os sofistas deixaram de representar um dado prevalecente na cultura grega, quando se iniciou a polêmica com os pensamentos aristotélico, estóico e cínico.
Os principais sofistas para o nosso estudo:
- Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Com essa afirmação, Protágoras relativiza o conhecimento da realidade e “seculariza” o verdadeiro conhecimento. Além do mais, tal assertiva explica, per se, porque os sofistas são conhecidos como precursores do humanismo.
- Valoriza um tipo de explicação do real a partir de seus aspectos fenomenais apenas, sem apelo a nenhum elemento externo ou transcendente.
- As coisas são como nos parecem ser, como se revelam à nossa percepção sensorial, e não temos outro critério para decidir essa questão. Nosso conhecimento depende sempre das circunstâncias.
- Afasta-se da concepção filosófica de verdade única e dos valores universais
- Górgias: Um dos maiores oradores e mestres da retórica de sua época: “A palavra é déspota poderoso” (apud BITTAR, 2001, p. 53).
- Cobrava uma boa soma para ministrar suas lições por toda a Grécia.
- Contribuiu no desenvolvimento dos diferentes estilos de oratória grega, como a apologia, o encomium (elogio).
- Defende a impossibilidade de um conhecimento em um sentido estável e definitivo. Tudo que dispomos é o discurso, o logos, não podemos ter acesso à natureza das coisas. Para ele, com a arte do logos viria tudo o necessário para a carreira política de sucesso.
- Segundo Górgias, mais importante que o verdadeiro, é o que pode ser provado ou defendido.


Sócrates, Platão e Aristóteles


12- Sócrates (469 a 399 a.C - período socrático ou antropológico)

- “A vida não-examinada não vale a pena ser vivida” (Sócrates).
- “Não pode ao homem conhecer o mundo ao redor dele (kósmos), nem o mudo acima dele (théos), sem primeiro conhecer o mundo dentro dele (anthropos), uma vez que o instrumento-chave que ele emprega para qualquer conhecimento é o seu próprio Eu”. (ROHDEN, Huberto. O pensamento filosófico da Antiguidade. 5 ed. São Paulo: Martin Claret, p. 68).
- Sócrates, diferentemente dos pré-socráticos, adotou como objeto investigativo o homem enquanto ser social, o humano que vive em sociedade e que, por isso, leva em conta valores que não existiriam se um homem estivesse sozinho no mundo, valores que são, por excelência, valores sociais (ex: virtude, bem, coragem, justiça, etc.). Por essa razão o período de Sócrates ficou conhecido como antropológico.
- É certo que os sofistas se ocupavam das mesmas referências sociais, mas não nos mesmos termos que Sócrates. Para o filosofo, os sofistas não se preocupavam com os valores humanos segundo medidas universais e verdadeiras, mas tão-somente com a conotação que esses valores poderiam obter (em aparência) perante os que viviam na Grécia, de acordo com o que era convenientemente empreendido mediante discursos retóricos efetivados no espaço público (muitas vezes com a ajuda dos sofistas).
- Além do mais, enquanto os sofistas se vestiam ricamente e tinham-se na conta de homens sábios e importantes (o que também era alvo de críticas de Sócrates e Platão), Sócrates não passava de “um sublime andarilho”, com vestimentas precárias, descalço, e que dizia nada saber (humilde em relação ao seu conhecimento).
- O período em que Sócrates viveu na Grécia ficou conhecido como o Século de Péricles. Atenas havia se tornado o centro da vida social, política e cultural da Grécia. Época de maior florescimento da democracia, o que marcou a participação popular no governo e nas decisões políticas, por meio da igualdade entre cidadãos perante as leis (mas mulheres, crianças, idosos e escravos eram excluídos disso, pois que considerados dependentes. Esse fato, no entanto, era por todos considerado natural, pois se acreditava que a natureza cuidou de fazer os homens diferentes – uns cidadãos, outros escravos, mulheres. Na época não havia o mesmo senso de direito à igualdade dos dias atuais, nem a noção de liberdade que permitiria galgar-se uma outra condição social. Mas, repetindo, isso era natural e não condenável).
- Em Atenas, da aristocracia (educação baseada na contemplação do belo no corpo e na mente, espelhada nas obras dos autores como Homero e outros poetas) passou-se à democracia (educação voltada para o exercício da política - muitas vezes feita pelos sofistas – por meio da qual a classe em ascensão, a dos comerciantes, poderia tomar parte no governo).
- A oposição de Sócrates ao pensamento sofista, como se disse, advém de sua interpretação a pessoas que, segundo ele, não eram filósofos, pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela Verdade, já que defendiam idéias amoldadas a seus interesses. Faziam com que o erro e a mentira valessem tanto quanto a verdade.
- Para os sofistas, o sucesso depende de uma brilhante carreira. Para Sócrates, a verdade exige o desapego das coisas mundanas, ou seja, da riqueza, honra e prazeres, que escravizam o homem e o impedem de conhecer-se a si mesmo. A verdade só pode ser alcançada por intermédio da reflexão, quando a idéia já não mais está aberta a contra-argumentos. Não se alcança a verdade simplesmente ouvindo passivamente àqueles que dizem a ter.
- Para os sofistas, todos os valores são relativos. Para Sócrates, todos são imutáveis, eternos, absolutos. A virtude consiste em realizar o Bem, é uma suprema sabedoria (sabedoria que só poderia ser alcançada pela reflexão e autonomia de pensamento).
- Sábio e desprendido investigador da verdade, Sócrates quebrou o relativismo sobre a verdade empreendido pelos sofistas e substituiu o individualismo egoísta do homem pelo princípio do Eu universal. O ser do homem é eterno, apenas o seu existir que é temporário. O homem, em sua essência, seria anterior à encarnação e posterior à desencarnação. Portanto, a verdade e o Bem não estão necessariamente naquilo em que acredita a maioria das pessoas que vivem em sociedade sob o comando de outrem.
- A virtude era (como na acepção moderna) “a qualidade do homem que dirige seus atos para o conhecimento e a realização do Bem”. O Bem só pode ser compreendido por intermédio do conhecimento. O ensinamento ético de Sócrates, em poucas palavras, se volta ao conhecimento e à felicidade (onde está a virtude está a felicidade).
- Não era considerado um filósofo essencialmente metafísico (como Platão) porque se voltava mais à ação, à práxis comportamental e à arte de bem viver. Muito mais que teorizar a respeito da virtude, ele a exercitou.
- Sócrates, em verdade, pode ser dito o iniciador da filosofia moral e o inspirador de toda uma corrente de pensamento coadunante com a idéia de Bem. Destacou-se por ter empreendido uma ruptura com a tradição precedente e com os ensinos predominantes em sua época.
- “Considerado Jesus Cristo” numa “versão secular” pois, condenado por seus ensinamentos (e consectários efeitos) aos cidadãos de Atenas, ele preferiu a morte (bebendo cicuta) a renunciar a seu trabalho (embora tenha conquistado devotos seguidores, como Platão, Sócrates também fez inimigos entre gente importante). Sócrates também não quis contrariar a lei, pois, justa ou injusta, reflete, em tese, a expectativa de todos os envolvidos em sociedade (ademais, todo indivíduo sempre considera ter, mais que outro, o bom senso). O débito social porventura advindo de sua desobediência seria algo incontornável. O respeito à lei deve imperar. Moralidade e legalidade caminham juntas para a realização do escopo social. Obedecer aos deuses era o mesmo que obedecer às leis da cidade, e vice-versa.
- O testemunho de vida de Sócrates bem provou sua convicção no acerto da renúncia em prol da cidade-estado (polis). Ao contrário de fomentar a desordem, sua filosofia prima pela submissão, uma vez que a ética do coletivo está acima da ética do indivíduo.
- A morte foi bem aceita por Sócrates, pois, segundo ele, “os homens não sabem que os verdadeiros filósofos trabalham durante toda a sua vida na preparação de sua morte e para estar mortos” (PLATÃO, Fédon, 1999, p. 124).
- Sócrates nunca escreveu nenhuma de suas idéias (e sim seu discípulo Platão). Não se pode, assim, saber muito sobre o verdadeiro Sócrates. Como se disse anteriormente, Sócrates perambulava por Atenas, principalmente pelo mercado, a fazer questionamentos e a propor discussões entre os cidadãos, demonstrando argumentativamente os erros que permeavam as crenças e conhecimentos tradicionais de sua época relativos aos valores sociais (ex: o que era a justiça?).
- As perguntas de Sócrates se referiam a idéias, valores, práticas e comportamentos que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos. Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto (CHAUÍ, 2005, p. 42).
- Sócrates é lembrado menos pelo que disse do que pela maneira de ensinar. O método socrático consistia em fazer perguntas sobre o que os outros pensavam, suas idéias e valores (tanto assim que nos textos escritos por Platão, sobre Sócrates, se reproduzem sempre seus diálogos – a maneira lógica e dialógica de ensinar e demonstrar).
- O método socrático é uma forma primitiva de dialética, conhecido como maiêutica (como método sistemático da lógica, segundo disse Aristóteles anos depois. Com escoro no raciocínio dialético, fica mais fácil compreender as coisas a partir de comparações com outras. Por exemplo, não compreendemos o altruísmo sem saber o que é o egoísmo).
- A ironia de Sócrates: por meio de suas perguntas sucessivas, muito bem articuladas e bem concatenadas, Sócrates fazia seu interlocutor entrar em contradição e reconhecer fatalmente os erros e a falsidade de seus pretensos conhecimentos.
- Sócrates perguntava sobre a essência das coisas, algo para além da experiência sensível. Havia que se extrair o conceito (verdade intemporal) das coisas, que é justamente o que o pensamento conhece da essência.
- Como se mencionou acima, Sócrates, por sua prática questionadora, acabou sendo acusado pelos poderosos de Atenas de desrespeitar os deuses, corromper os jovens e violar as leis. Julgado pela Assembléia, Sócrates, sem querer se defender, foi condenado e obrigado a se suicidar, bebendo cicuta (conforme relatado no texto “Fédon” e na obra “Apologia de Sócrates”, escrita por Platão). Sócrates disse que preferia a morte a ter que deixar de filosofar.
- Para Sócrates, a filosofia nos liberta: ao avaliarmos as opiniões em geral, tornamo-nos
mais críticos e mais capazes de escolher, por nós mesmos, nossas crenças e valores. Conhecer não é fiar-se nas aparências e nos enganos e desenganos humanos, e sim fiar-se no que há de verdadeiro e certo.

13- Platão (428 a 347 a.C - no período socrático ou antropológico)

- Discípulo de Sócrates, escreveu seus diálogos. Como o mestre, tinha a sabedoria na conta de a mais excelsa de todas as virtudes. Desenvolve com acuidade os mesmos pressupostos elementares do pensamento socrático: a virtude vem do conhecimento, e o vício existe em função da ignorância.
- Como seu mestre, Platão considerava as opiniões e percepções sensoriais, ou imagem das coisas, como fonte de erro, mentira e falsidade, formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade plena da realidade (sombras). Isso pode ser compreendido pela leitura da Alegoria da Caverna (República, livro VII).
- Na Grécia, fundou a Academia, considerada a primeira universidade.
- Inicialmente, quando jovem, começou a se envolver com a política, mas desiludiu-se. Ainda mais quando Sócrates foi condenado à morte. Mesmo assim manteve a esperança de que a filosofia pudesse ter uma influência positiva sobre a política (pela República).
- Era racionalista, ou seja, acredita que podemos conhecer as idéias verdadeiras sem o uso da experiência (idéias inatas).
- A difícil tarefa do filósofo é descobrir como é o mundo ideal, ensinar os outros a reconhecê-lo e regular suas vidas e pensamento de acordo com ele.
- Buscava os últimos fundamentos da Ética racional e superior, traçando a mais avançada e remontada metafísica constante na História da Filosofia Ocidental.
- Platão defende a existência de “dois mundos distintos”: um material, concreto, mas de aparências, que vejo e experimento pelos meus sentidos; e um mundo imaterial, abstrato, onde estão as idéias perfeitas sobre os valores humanos.
- O aspecto básico do pensamento de Platão é o conceito de idéia (eidos). Para ele não tinha o significado comum que temos hoje, de algo que surge na mente e nos impulsiona a realizar ações imediatas (que são, em verdade, nada mais que uma criação e uma projeção de nossa mente). Para Platão, as idéias significam outra coisa, advém do mesmo radical que dá origem ao conceito ideal (idéia = ideal). As idéias, segundo ele, existem em um mundo próprio, elas são “formas” ideais que moldam a realidade comum, sensivelmente perceptível. Elas estão sempre certas, enquanto o mundo físico (do vir-a-ser) pode estar errado.
- “Além do universo visível e móvel, existe um invisível, fixo, perpétuo e perpetuamente presente e atuante, o universo das idéias, únicas realidades verdadeiras sob o véu das aparências, que, por outro lado, são as únicas que nós podemos perceber. Ela não é o modelo que trabalhamos por igualar, sem lhe tirar os olhos de cima, é o próprio princípio do nosso trabalho, a força que nos impele, a razão que nos conduz e nos dirige, a meta que nos é indicada. Só nela existe o repouso de uma realização total” (TRUC, Gonzague. História da Filosofia. Porto Alegre: Globo, 1968, p. 50).
- As idéias não são, assim, a representação das coisas, mas modelos (ideais) das coisas e dos valores sociais (como o Bem, a justiça, a perfeição, a coragem, etc.).
- Para Platão, se obtém conhecimento verdadeiro quando se pauta pelo que está além da aparência, pelo ideal, atingindo-se o mundo das idéias pela intuição (ex: todos temos em mente, e de modo inato, a noção do que é o Bem, ou do que é fazer o Bem para outra pessoa, ou, ainda, o que significa a perfeição ou o infinito. Segundo Platão, as idéias – formas perfeitas e ideais – são inatas, nascem conosco e não precisamos aprendê-las pela educação. Por mais que eu nunca tenha visto o infinito, sou capaz de imaginá-lo ou entender seu significado).
- Mas, como sabemos que esse mundo ideal, se não é físico, existe? De duas maneiras: uma lógica e uma intuitiva. Posso intuir o que é o Bem, a Verdade, o Infinito, etc., por mais que nunca tenha visto o máximo da perfeição, ou o máximo da beleza, na prática. Essas idéias são inatas. Ademais, por perceber, pela experiência, inúmeras manifestações diferentes do que o bem significa, conforme a sociedade, dou-me conta que há pontos coincidentes nessas manifestações diversas, o que pela lógica penso num ideal de Bem (de onde surgem as manifestações práticas) e percebo que só pode estar (enquanto modelo ideal), em minha mente, no mundo das idéias.
- Dois mundos distintos, portanto: o das idéias e o da matéria. O mundo impalpável domina o outro e é a causa da existência das coisas.
- Eidos – eidola – ídolo (cópia do original).
- Esse Eidos de Platão simboliza, em última e definitiva síntese, o Infinito, o Absoluto, a Essência, o Criador, a Perfeição. É a realidade incausada e causante de todos os eidola, de todas as criaturas, de tudo o quanto existe.
- O Eidos não pode, nessa seara, ser percebido pelos sentidos nem concebido pela inteligência; só pode ser intuído pela razão. Pode e deve ser vivido pela introvisão qualitativa e crística do Eu.
- Por derradeiro, anote-se que Platão afirma que é por reminiscência que se podem recuperar as idéias que estão latentes na alma humana, mas que foram esquecidas na passagem da alma de sua condição no Hades (local além-vida em que é feito o juízo final) para a Terra (a respeito: República, livro X, parte final – Mito do Er).

- Filosofia Política: Platão reconhece que a consciência socrática é o reflexo vivo e sofrido do surgimento da cultura, ponto de partida que implica, em parte, em ruptura com a natureza primitiva. Segundo Sócrates, um universo sem nomos (normas, leis) seria de animais.
- A teoria política de Platão é um esforço em alcançar uma posição intelectual em que o caos que é a vida política (em função da prática política – democracia ateniense) entre no campo da episteme, para tornar-se ciência (ciência da ordem social). O Estado representa a mais alta revelação da virtude humana, e só no Estado o homem pode atingir sua perfeição e realizar a plena satisfação do seu destino.
- Segundo o ideal platônico, incumbe aos sábios reinar, aos guerreiros proteger, e às classes obreiras obedecer, isso conforme o que a própria natureza destinou aos homens, como suas características individuais.
- O modelo de Estado platônico é, assim, análogo ao conceito de Alma. O Estado deve ser composto de 3 camadas sociais: 1) Parte racional da alma (Filósofos - camada governamental); 2) Parte do coração, a irascível (Guardiões); 3) Parte do estômago, a desejável (Camada produtiva – parte material). Essas seriam as condições de existência da polis. E segundo Platão, não se podem alterar as hierarquias que a sábia natureza estabeleceu entre elas. Só se alcança justiça social (virtude da polis) se for observada essa divisão, quando cada camada ocupa o lugar que lhe corresponde por natureza.
- A divisão do trabalho é a regra de justiça no Estado Ideal; três classes se dividem em três atividades (política, defesa, economia), não podendo haver interferência de uma classe na atividade da outra.
- O Estado ideal platônico é um Estado concebido para proteger a moralidade dos indivíduos, num momento em que os fundamentos morais da polis estavam, já há algum tempo, em profunda crise. Sua elaboração teórica será uma tentativa para corrigir as causas da dissolução da comunidade grega, vista por ele na democracia e na propriedade privada. No mundo, a tarefa de educação das almas deve ser levada a cabo pelo Estado. A educação deve ser pública com vistas no melhor aproveitamento do cidadão pelo Estado e do Estado pelo cidadão.
- O virtuosismo platônico tem a ver, portanto, com o domínio das tendências irascíveis e concupiscíveis (de cobiça) humanas, tudo em vista da supremacia da alma racional (a razão, a prudência, deve imperar sobre os sentidos, os desejos).
- Assim como Sócrates, Platão via na prudência (phrónesis – e não meramente a filosofia contemplativa) a virtude de caráter fundamental para o alcance da harmonia social. E só o sábio, o filósofo, desgarrado da cobiça e demais vícios sociais é que poderia bem exercer o governo.
- A ética platônica existe a priori na sociedade, na materialidade do Estado ideal. O filósofo transforma a moral em legalidade pura (o que está aliado à noção de ordem social, categoria que exclui a possibilidade de conflito). Há ordem no sistema platônico, embora não ordem política. A ordem entendida como harmonia, estabilidade e unidade nunca surgiria do curso normal dos direitos políticos (pelo modelo democrático).
- O filósofo seria o mediador entre a idéia do Bem e a comunidade, reunindo o poder de pensamento (adequado) e o poder governante (que o colocaria em prática).
- O modelo político platônico fica vinculado à sua teoria do conhecimento. Segundo explica, o conhecimento genuíno deve se originar do âmbito estável das “formas imateriais” (no mundo das idéias). Para o filósofo, a epistemologia do sensível (do mutável) é, por sua própria estruturação, autêntico absurdo e contradição. Platão queria, portanto, despojar a política de suas próprias práticas (impregnadas de inconstância e modificações – como ensinada e fomentadas pelos sofistas).
- A crítica que se faz à teoria política metafísica de Platão é que ela ignora, de certa forma, a realidade social, reproduzida no campo real, da semelhança entre indivíduos participantes, e do logos dialógico.


14- Aristóteles (384 a 322 a.C - período sistemático)

- Permaneceu na Academia de Platão por cerca de vinte anos, até a morte do mestre. Educou o jovem Alexandre (o Grande), filho de Felipe da Macedônia. Com a partida de Alexandre para as Campanhas da Ásia, Aristóteles funda, aos cinqüenta anos, em Atenas, o Liceu de Filosofia.
- Seu próprio sistema filosófico foi desenvolvido a partir de uma crítica ao pensamento de Platão, sobretudo à teoria das Idéias.
- O ponto central da crítica de Aristóteles a seu mestre consiste na rejeição do dualismo (dois mundos) representado pela teoria das idéias. Ele acusa dificuldades em se explicar a relação entre o mundo inteligível, ou das idéias, e o mundo sensível, ou material (tal como visto, por exemplo, na Alegoria da caverna - livro VII de A República).
- Aristóteles sustenta, nesse sentido, que os dois mundos de Platão possuem naturezas distintas, que não têm elementos comuns (Marcondes, 2005, p. 70/71). Haveria, portanto, a necessidade de uma ligação externa entre esses dois mundos, a eles uma ligação “estranha”. Se houvesse uma relação interna entre os dois mundos, haveria elementos comuns e não haveria dualismo.
- A metafísica
de Aristóteles (sua concepção do real) possui um novo ponto de partida, que afasta o dualismo platônico. Ela inaugura o estudo da estrutura geral de todos os seres ou as condições universais e necessárias que fazem com que exista um Ser e que possa ser conhecido pelo pensamento (Chauí, 2005, p. 191).
- A filosofia de Aristóteles é extremamente sistemática. Hierarquizou os conhecimentos e estudou sistematicamente sobre vários campos do conhecimento, escrevendo sobre ciência geral (conhecimento teórico, metafísico e ontológico: filosofia, teologia, matemática); ciência natural (conhecimento da realidade natural: física, astronomia, ciências biológicas, psicologia); saber prático (estudo da ética e política: estabelecimento de normas e critérios da boa forma de agir, isto é, da ação correta e eficaz).
- Aristóteles, ao contrário de seu mestre, valoriza o saber empírico. A prática social e a transformação da natureza são importantes para a formação do conhecimento. Ademais, os sentidos não são necessariamente fonte de erros, pois, como mesmo afirmou: “nada vai ao intelecto sem que passe primeiro pelos sentidos”.
- Em nosso estudo, volvido para acadêmicos de Direito, nos concentraremos na filosofia política de Aristóteles e na sua concepção acerca da justiça e suas vertentes.
- No caso da política, Aristóteles afirma, ao contrário de Platão, que a democracia e benéfica ao ser humano, porque de acordo com a natureza. Isso porque Aristóteles acentua que a natureza se opera mediante leis dinâmicas de mutação, as coisas se transformam (ex: nós já fomos crianças, hoje somos adultos e um dia morreremos) e, por isso, no contexto político, os valores podem mudar de acordo com a evolução das expectativas dos envolvidos socialmente. E é o regime democrático o que melhor possibilita a capacidade de transformação contínua das leis conforme as mudanças sociais.
- Se em Platão se pode pensar a política como arte da ordem (pelos desígnios de uma natureza imutável, que deve pautar a política), em Aristóteles também se pode pensar a política a partir da idéia de “natureza”, mas, desta vez, esta cobra dinamismo. Longe de ser ponto de oposição à sensibilidade, a teoria aristotélica encontra um ponto de reconciliação com o primado da contingência. Esse ponto nada mais é do que a política (em sentido amplo – ciência prática – que centra seu objeto nas ações humanas). O grande esforço aristotélico é a tentativa de conciliar o reino da necessidade (natureza) com o da contingência (como o reino da liberdade).
- A preocupação primária da política é, nesses termos, não a temática da ordem, mas a problemática da governabilidade (os conflitos aparecem a priori e, ao invés de terem que ser superados, têm que ser administrados). Para Aristóteles, o conflito é constitutivo da natureza das relações humanas, não há como ser evitado, somente administrado, governado.
- A política se articula com a ética na medida em que examina o contexto em que o homem virtuoso deve exercer sua virtude, que é a pólis (o agir virtuoso não só se caracteriza por aquilo que torna o homem feliz, mas pela relação com os outros, ou seja, pela vida social). Para Aristóteles, o homem é por natureza um animal político (zoon polítikon), assim como as abelhas e as formigas, que se unem no intento de alcançar o Bem comum.

- A ética: Para Aristóteles ela é o estudo da virtude (areté, ou mais propriamente, excelência). “Nosso objetivo é tornar-nos homens bons, ou alcançar o grau mais elevado do bem humano. Este bem é a felicidade; e a felicidade consiste na atividade da alma de acordo com a virtude” (Ética a Nicômaco, I). Na mesma obra, Aristóteles diz que quanto mais o homem deixar de ser materialista e egoísta, tanto mais será feliz.
- O ponto mais importante de seu legado sobre a ética é a famosa tese de que a virtude está no meio. Os indivíduos que fazem com que outros recebam menos, assim como os que se empenham para (ou aceitam) receber mais, incorrem em vício (a injustiça). Todavia, para se cometer injustiça é imprescindível a intenção; a situação de passividade de quem recebe “menos”, sem culpa, não constitui vício.
- Tomando o conceito de coragem, por exemplo, tem-se o corajoso não como aquele que enfrenta tudo independentemente das condições, mas aquele que é também prudente, temeroso, sem, contudo, perder a iniciativa. O homem virtuoso deve conhecer o ponto médio, a justa medida das coisas, e agir de forma equilibrada de acordo com a prudência ou moderação, que pode ser entendida como a própria caracterização do saber prático (Marcondes, 2005, p. 77).
- Justiça: A justiça é concebida por Aristóteles como virtude, ao lado de todas as demais como coragem, temperança, benevolência... O desenvolvimento desse tema, em Aristóteles, tem sede no campo ético, uma ciência que vem definida pelo filósofo como ciência prática (centrada no âmbito disciplinar, não propriamente científico, e que visa a práxis, ou seja, à obtenção de resultados práticos por meio da razão como diretiva da ação humana. A ciência prática que discerne o bom e o mau, o justo e o injusto, se chama ética). A razão prática é a capacidade humana de eleger comportamentos para a realização de fins.
- A lei
elaborada pelos homens recebe a denominação entre os gregos de nomos (mas não só a lei escrita, como também os costumes, a convenção social, a tradição). Para Aristóteles, a legislação (nomos), enquanto trabalho do legislador, não se confunde com o direito enquanto resultado da ação. Há uma diferença entre lex e jus na proporção da diferença entre trabalho e ação. A lei condiciona o jus, mas o que confere estabilidade ao jus é algo imanente à ação: a virtude do homem justo, sua postura perante a sociedade, primar pela justiça, na práxis.
- Aristóteles acreditava que só se poderia haver realização humana plena em sociedade. Todas as motivações éticas deveriam ser direcionadas à vida na pólis. A política, também enquanto ciência prática, tem a tarefa de traçar as normas suficientes e adequadas para orientar a atividade da pólis e dos sujeitos que a compõem, para a realização palpável do Bem Comum.
- Nesse sentido, é a observação do homem em sua natural instância de convívio, a sociedade, que possibilita a formulação de juízos éticos; é dessa experiência, pois, que se extrairão os conceitos explorados dentro da temática que se abeira das noções do justo e do injusto.
- No campo privado, a virtude é a adequação dos princípios éticos às características individuais, sempre em busca do meio termo. O conceito de justo meio não comporta de forma alguma uma compreensão genérica e indiferente às qualidades específicas dos indivíduos; é, pelo contrário, dentro das ambições teóricas de Aristóteles, sensível à dimensão individual. O justo meio é encontrável pela situação da virtude em meio a dois outros extremos eqüidistantes em relação à posição mediana, um primeiro por excesso, um segundo por defeito.
- No campo da polis, a cidade-estado, Aristóteles, ao contrário de Platão, vê a democracia como o melhor regime de governo, pois permite a participação de todos os cidadãos
nas tomadas de decisões, desde que os cidadãos hajam sempre comprometidos com preceitos justos, virtuosos. Se o homem é, por natureza, racional, e por natureza político, então ele exerce essa sua racionalidade no convívio político. Não de outra forma a racionalidade humana se exerce, senão em sociedade, na polis, e assim por meio do discurso (logos).
- Somente a educação ética, ou seja, a criação do hábito
do comportamento ético, o que se faz com a prática à conduta diuturna do que é deliberado pela reta razão às esferas da razão humana, pode construir o comportamento virtuoso. O importante é a reiteração da prática virtuosa; nesse sentido ser justo é praticar reiteradamente atos voluntários de justiça. A prática ética é, para Aristóteles, o caminho para a felicidade (harmonia do comportamento humano individual e social).
- A virtude não é nem uma faculdade, nem uma paixão inerente ao homem, encontra-se nele apenas a capacidade de discernir entre o justo e o injusto (liberdade e consciência moral). Ao homem é inerente a capacidade racional de deliberação, o que lhe permite agir aplicando a razão prática na orientação de sua conduta social. Conhecer em abstrato (teoricamente) o conteúdo da virtude não basta, sendo de maior valia a atualização prática e a realização da virtude (mesmo quem conhece o fundamental da justiça, mas não a pratica, nem por isso é justo).
- A respeito da justiça - tipos:
- O justo total é a observância do que é regra social de caráter vinculativo (nomos – tanto lei escrita quanto os costumes). Um homem é justo quando age na legalidade, é virtuoso quando, por disposição de caráter, orienta-se segundo esses mesmos vetores.
- Justiça distributiva: O justo distributivo ocorre quando se proporciona a cada qual aquilo que lhe é devido, dentro de uma razão de proporcionalidade participativa, pela sociedade, evitando-se o excesso e a carência (buscando, assim, o meio-termo). É claro que quem recebe, passivamente, menos, não incorre em vício, mas, sim, aquele que distribui desproporcionalmente.
- Nessa seara, a igualdade é tida de acordo com a geometria das desigualdades entre pessoas relacionadas (uns conhecem mais, outros agem mais, outros possuem maior técnica e habilidade manuais...) e coisas envolvidas (honrarias, impostos, deveres, obrigações, prestígio, salário, remuneração, função social, cargo, etc.). Portanto, a justiça distributiva é igualdade de caráter proporcional, pois é estabelecida e fixada de acordo com um critério de estimação de sujeitos analisados. Por exemplo, nem todas as pessoas recebem os mesmos salários, pagam os mesmo impostos e recebem igual ajuda do governo.
- Justiça corretiva: Aqui não se tem presente qualquer tipo de relatividade, pois não se tem em conta os méritos, as qualificações, as distinções, as igualdades ou desigualdades que possam existir entre as pessoas. A aritmética aplicável permite a ponderação entre a perda e o ganho, garantindo, com objetividade, o restabelecimento das partes à posição inicial em que se encontravam. É o que ocorre nas indenizações determinadas pelo judiciário, por exemplo (justiça corretiva reparativa – o início da relação, para as partes nela envolvidas, é o início de sua desigualdade – uma paga, outra recebe).
- A justiça corretiva, em Aristóteles, se mostra importante na medida em que ela se diferencia do conceito de justiça dos filósofos da escola de Pitágoras, que tomavam o conceito de justiça e de reciprocidade como sinônimos, qual o princípio punitivo de Talião (olho por olho, dente por dente), em que se retribui um mal com o mesmo mal em quantidades equivalentes (BITTAR, 2001, p. 97). Sócrates já havia criticado essa noção de justiça à base da reciprocidade.
- Aristóteles, nesse sentido, nas pegadas inauguradas por Sócrates, consagrou o princípio de que não se deve responder com injustiça a uma injustiça, o que equivaleria à reiteração ad infinitum (infinitamente) de um conflito. Dessarte, a justiça deve substituir a qualquer outro valor social, uma vez que ao cidadão cabe fazer com que esta prevaleça na comunidade. A nova reciprocidade aristotélica, fundada na proporção, é elemento basilar das trocas sociais efetuadas entre bens de naturezas diversas.
- A reciprocidade proporcional é, assim, imprescindível para o governo das múltiplas necessidades humanas.
- Justo legal: Fundado na convenção social, na lei. É dinâmico, se relativiza de acordo com a positivação das normas e decisões. Estão inseridos nesse conceito de justo legal (que é parte da justiça política que se realiza na vida cívica), além das leis, os decretos, as decisões emanadas do poder administrativo do governante, as sentenças judiciais, a aplicação concreta da generalidade abstrata das disposições legais.
- Justo natural: Talvez entre os deuses exista um justo que seja verdadeiramente imutável, mas entre humanos o justo por natureza está também sujeito à mutabilidade (para Aristóteles a physis num todo, que engloba os humanos, é sempre mutável). Juntamente com o justo legal, também dinâmico, o justo natural forma o conceito aristotélico justo político. O homem é naturalmente um animal político (zoon polítikon), assim sendo está sujeito ao dinamismo, à mudança de concepções e aspirações também no âmbito social (já que a sociedade é entendida como uma conseqüência natural da relação entre humanos).
- Mas o que diferencia o justo natural do justo legal? Podemos facilitar a diferenciação por intermédio do seguinte exemplo: o roubo é considerado crime em várias sociedades e a necessidade de sua repressão (do fato em si: roubo) é opinião unânime entre os cidadãos, independentemente da mensuração da pena que será aplicada como punição ao criminoso. Enquanto a medida da punição varia entre constituições ou legislações de diferentes países (justo legal), a necessidade de repressão ao roubo, como opinião, é comum entre os cidadãos desses diferentes Estados (pois advém de uma concepção de justiça – justo - natural). Portanto, enquanto a justiça legal aponta para a multiplicidade, a justiça natural o faz para a unidade de tratamento de determinada matéria reputada de relevo para a sociedade. A resposta oferecida pelo justo natural é única e homogênea, apesar de mutável (o roubo pode, por exemplo, mesmo que dificilmente, deixar de ser injusto).
- Importante ressaltar que a legalidade visa albergar as pretensões, aspirações e necessidades humanas no âmbito social, de modo que, para Aristóteles, o justo legal deve e só pode ser construído com base no justo natural (modelo ideal). E a justiça natural realiza-se com a própria práxis da razão em sociedade (como se disse, Aristóteles concebe o homem como naturalmente sociável, um animal político. E a racionalidade é o que o diferencia dos outros seres vivos, sendo essa sua característica inerente. Por isso a práxis da razão em sociedade, e sua evolução, é natural nos seres humanos, de onde brota, entre outras coisas, a concepção do que é naturalmente justo – o justo natural). A noção de justiça nasce do vir-a-ser constante que permeia a existência do homem enquanto participante de uma natureza corruptível (a própria norma social, de um modo geral, visa o dever-ser).
- Mas é claro que o justo político nem sempre está de acordo com a natureza, figurando corrompido nas formas de governo em que a constituição é apenas instrumento de manipulação de poder ou de aquisição de benefícios por parte de um ou alguns homens.
- Para se qualificar as leis como justas ou injustas há que se perguntar se elas estão a serviço do Bem Comum ou se estão a serviço da satisfação de interesses momentâneos e arbitrários próprios das formas de governo corrompidas (tirania, oligarquia, demagogia).
- Justiça como Equidade: Equidade deriva do termo équo, que pode significar algo “muito bom” (enquanto o justo, “bom”). A equidade é a correção dos rigores da lei (BITTAR, 2001, p. 110). A legislação é sempre empreendida de maneira abstrata, na tentativa de abarcar situações hipotéticas capazes de nortear a conduta do homem social. Contudo, a lei não consegue atingir minimamente os contornos existentes em situações isoladas. É exatamente com o intuito de superar os problemas existentes da impossibilidade de haver uma legislação minimamente detalhista e futurista é que existe o equo. Não se trata de um erro legislativo, mas sim de um problema oriundo da própria peculiar conformação das coisas como são na prática.
- Aplicar a equidade significa agir de modo a complementar o caso que se apresenta aqui e agora de modo que, assim o fazendo, está-se a agir como o faria o próprio legislador se presente estivesse. É na ausência da lei que a equidade guarda sua maior utilidade, sobretudo complementando, particularizando e respondendo pelo que quedou imprevisto.
- Encontra aplicação, também, quando se mostra obsoleta a lei pela alterabilidade constante a que estão sujeitas as circunstâncias fáticas que passam a contradizer o cristalizado na legislação. Há que se ter em conta não a letra da lei, mas a intenção do legislador; não a parte, mas o todo. O apelo à razão é o mesmo à natureza das coisas que se encontram em processo de mutação.
- A equidade também deve ser aplicada quando do acometimento de atos que escapem a toda previsibilidade humana, desprovidos de maldade, os quais não devem ser punidos com o mesmo rigor com o que o são os delitos e os atos de perversidade, o que enseja uma discriminação dos elementos psicológicos do agente analisando-se “(...) não o estado atual do acusado, mas sua conduta constante ou sua conduta na maioria das circunstâncias” (ARISTÓTELES apud BITTAR, 2001, p. 112). É o que ocorre no julgamento criminal hodiernamente, com as excludentes.
- O homem equo é aquele entendido como virtuoso que prefere resolver suas pendengas sem ter que recorrer necessariamente aos tribunais, o que prefere a arbitragem ao processo, porque o arbítrio considera a equidade, e o juiz a lei (BITTAR, 2001, p. 1112). É equo, ainda, o homem que se inclina a ter menos mesmo quando a lei lhe é favorável em detrimento do outro. Nas relações privadas a equidade representa a excelência do homem altruísta que segue os princípios de civilidade e virtuosismo, próprios da moral que permeou a escola socrática.
- Amizade e justiça: A relação entre os seres humanos, gregários que são, é, em regra, a amizade. Pela amizade que se estabelece a união entre homens e também a união ou respeito entre países. Mas, como a amizade entre os homens nem sempre está presente, é necessário o senso de justiça.
- Juiz: Justiça animada: O juiz, na teoria aristotélica, é o mediador de todo o processo de aplicação da justiça corretiva. O juiz deve representar o justo personificado. Na justiça corretiva deve tentar, ao máximo, restabelecer a relação entre as partes ao status quo ante. Para restabelecer a igualdade, o juiz não deve se servir de seu arbítrio ou de seus interesses, mas do convencionado e consubstanciado na legislação. Dessa sorte, indiferentemente se se trata deste ou daquele cidadão, aplicar-se-á a lei de modo a obter-se uma situação de igualdade aritmética: nesse sentido, a lei e cega para as diferenças de qualificação de cada qual (justiça corretiva).

- Para finalizar, é importante salientar que Aristóteles via na classe média a casta mais importante no desenvolvimento da democracia, apta a uma ótima governabilidade, porque era a que mais facilmente obedecia à razão (não ambiciona demais os cargos públicos, nem os rejeitam – e para Aristóteles a virtude está mesmo no intermediário, no moderado).
- A democracia é o melhor regime de governo porque ele concebe uma moralidade média.

SUGESTÃO: Leitura dos trechos dos textos “Ética a Nicômaco” (a virtude é um hábito), e “Política” (o homem é um animal político), das páginas 52/56 do livro “Textos básicos de filosofia”, Danilo Marcondes, Editora Jorge Zahar, 2005.


O Helenismo e suas principais correntes


15- O Helenismo

- É o último período da Filosofia antiga, quando a pólis grega desapareceu como centro político. A pólis também não era mais a referência principal dos filósofos, pois a Grécia estava sob o poder do Império Romano. O helenismo é o período de transição entre a Antiguidade Clássica e a Idade Média Cristã, contexto em que se dá o encontro entre o mundo greco-romano e a cultura judaico-cristã.
- O cristianismo não foi um marco do fim do helenismo (o helenismo perdurou até o séc. VI d.C – Chauí, 2005, p. 46; Marcondes, 2005, p. 84).
- Com a morte prematura de Alexandre o Grande (época em que morreu, também, Aristóteles), o caos político e as pragas debilitaram a civilização grega, que já houvera sido próspera. Quando a poeira assentou, o Império Romano passou a ser o poder predominante no Mediterrâneo. Contudo, embora os gregos estivessem reduzidos a cidadãos de segunda classe no vilarejo global, a filosofia, a mitologia e a cultura grega ainda influenciavam o mundo romano (por exemplo, os deuses romanos são os mesmos gregos, com outros nomes).
- É o período da filosofia cosmopolita, pois os filósofos se qualificavam como cidadãos do mundo (e não mais da pólis simplesmente, pelos motivos narrados acima).
- O grande centro político e cultural do helenismo foi a cidade de Alexandria, fundada por Alexandre (332 a.C), e capital do reino grego estabelecido no Egito por seu general e sucessor Ptolomeu.
- A amplidão do Império Romano e a abertura comercial propiciaram contato dos filósofos helenistas com a sabedoria oriental. “Podemos falar numa orientalização da filosofia, sobretudo com a aparição de aspectos místicos e religiosos no pensamento e na ação” (Chauí, 2005, p. 45).
- Na época, a individualidade de cada filósofo (como autor, produtor de determinada obra) não era tão valorizada como na época de hoje (isso é uma herança do período moderno). O pensamento do helenismo era essencialmente um pensamento de escola, em que mais importante do que a originalidade do indivíduo era sua vinculação a uma determinada tradição, a uma corrente filosófica. O helenismo, assim, não se caracterizou pelo nome de grandes mestres.
- A produção filosófica helenística consistiu basicamente em comentários a textos dos clássicos e dos fundadores das escolas (como Epicuro), ou em desenvolvimento das teorias propostas por esses filósofos.
- Caráter eclético e conciliador, pelas doutrinas, das teorias filosóficas então existentes.
- Com a criação, na época, de reinos e impérios, em que o poder é fortemente centralizado e absorve as práticas religiosas, reduz-se em grande escala a participação política do cidadão, que, em conseqüência, se sente um tanto desenraizado (perdia sua referência social básica que era a pólis), necessitando de uma ética com forte conteúdo prático e que lhe dessem novas referências quanto a regras de conduta, apontando um caminho para a busca de uma felicidade pessoal nesse novo contexto pluralista e multicultural (com influências, inclusive, orientais).
- Por isso, segundo Marcondes (2005a, p. 87), a filosofia do helenismo é fortemente marcada por uma preocupação central com a ética, entendida em um sentido prático como o estabelecimento de regras do bem viver, da “arte de viver”.

16- O Estoicismo

- A escola estóica foi fundada em Atenas em 300 a.C por Zenão de Cítio (334 – 262 a.C), pensador que provavelmente freqüentou a Academia (fundada por Platão, mas que, obviamente, sofreu algumas mudanças durante os séculos que perdurou).
- A doutrina estóica foi desenvolvida pelos discípulos de Zenão, Cleantes (331-231 a.C) e Crisipo (280-206 a.C).
- O estoicismo concebe a filosofia composta de três partes fundamentais: a física, a lógica e a ética. Pela metáfora da árvore, a física é a raiz, a lógica o tronco e a ética os frutos. Assim, a parte mais importante, embora dependente das demais, é a ética: frutos que podemos colher da árvore do saber (mas não podemos tê-los sem as demais partes).
- O estoicismo vê uma estreita relação entre a física e a ética. O homem é um microcosmo no macrocosmo, é parte do universo, da natureza. Para ter uma conduta ética que lhe assegure a felicidade, as ações do homem devem estar de acordo com os princípios naturais, com a harmonia do cosmo, que dá equilíbrio a todo o universo. De um ponto de vista ético, portanto, uma boa ação é aquela em compasso com a natureza e sua harmonia.
- São três as virtudes básicas: a inteligência, que consiste no conhecimento do bem e do mal; a coragem, ou o conhecimento do que temer e do que não temer, e a justiça, o conhecimento que nos permite dar a cada um o que lhe é devido.
- Em razão da concepção de natureza pressuposta pela ética estóica, temos, na verdade, um forte determinismo ético, um fatalismo. A noção de necessidade, ou destino, é muito forte. O homem deve resignar-se a aceitar os acontecimentos como predeterminados. O estóico aceita os percalços da vida sem reclamar.
- Não é inação. Nós temos que agir conforme preceitos éticos, mas, ao tempo, temos que aceitar as conseqüências de nossa ação e o curso inevitável dos acontecimentos (exemplo de quem vê um afogamento e não consegue salvar a vítima, em que pese à tentativa, não deve se sentir culpado, porque “tinha que acontecer”).
- Isso porque o destino reflete a racionalidade do real, a qual devo aceitar, mesmo desentendido. Não é porque o destino seja simplesmente arbitrário e cego.
- A felicidade está na tranqüilidade, na ausência de perturbação. Alcançamos esse estado por meio do autocontrole, da contenção e da austeridade, aceitando o curso dos acontecimentos.
- O estoicismo latino se caracteriza pela ênfase na filosofia prática e em uma concepção humanística, valorizando a indiferença (apatheia, apatia) e o autocontrole.
- A ética estóica influenciou consideravelmente no desenvolvimento do cristianismo, dado seu caráter determinista e sua valorização do autocontrole, da submissão, e da austeridade.

17- O Epicurismo

- Escola fundada em Atenas por Epicuro (341-270 a.C), que notabilizou-se, sobretudo, pela retomada das teorias atomistas de Leucipo e Demócrito na obra Da natureza.
- Os epicuristas foram os grandes defensores de uma física materialista, atomista e mobilista. Eles não acreditavam em vida após a morte. Quando há a morte, os átomos voltam para a terra.
- A teoria do conhecimento dos epicuristas se caracteriza pelo conceito de pré-noção, que consiste na conservação de elementos da experiência imediata, os quais servem de pressupostos e pontos de partida para a aquisição de conhecimentos posteriores.
- Também postulava como princípio básico da ética a busca pela felicidade, obtida pela tranqüilidade ou imperturbabilidade. Porém, o caminho para atingi-la era diferente do que pregavam os estóicos: os epicuristas valorizavam a inteligência prática, considerando não haver conflito entre razão e paixão. O homem age eticamente na medida em que dá vazão a seus desejos e necessidades naturais de forma equilibrada ou moderada, e é isso que garante a felicidade.
- Os epicuristas, ao contrário de Aristóteles, não concebiam a felicidade na vida social, com participação na pólis e na convivência com os demais cidadãos. Ao contrário. A vida em sociedade dificultava a busca serena por prazeres modestos.
- É comum referir-se aos epicuristas, ainda nos dias de hoje, como filósofos que pregavam a busca desenfreada de prazer. Mas não é bem assim. A valorização do prazer é algo natural. Há a concepção de que a realização de nossos desejos naturais espontâneos é positiva. Mas isso não quer dizer (como ocorre comumente) que os epicuristas são devotados a uma vida de prazeres. Ao contrário, a ética prega a austeridade e a moderação, em que pese não haja supressão dos prazeres e desejos (pois são expressão de nossa natureza).
- O prazer seria a leitura, a introspecção, tudo moderadamente. É de se ressaltar que os epicuristas, inclusive, diziam que a “estrada” do romance é perigosa e pode trazer ansiedade e decepções, contrárias à felicidade. O esforço não valia.

18- O Ceticismo

- A tradição cética não se construiu a partir de um grande mestre. Não há um ceticismo, mas várias composições diferentes.
- Segundo os céticos, há, na história da filosofia, os que dizem ter descoberto a verdade (os dogmáticos), como Aristóteles, Epicuro, os estóicos, e outros. Há quem considere a verdade inapreensível. Os céticos não a conhecem, mas continuam buscando-a. Há, nesses termos, três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética.
- O ceticismo indica, literalmente, indagação. Eles estão sempre em busca da verdade, de modo que a afirmação de que “a verdade é inapreensível” é, para os céticos, um dogmatismo negativo (ao inverso), e não ceticismo. Os céticos continuam a investigar a verdade, suspendendo sempre o juízo de uma coisa ser verdadeira ou falsa.
- Aristóteles, antes mesmo da escola do ceticismo, já havia apontado a existência de elementos céticos nos filósofos pré-socráticos e nos sofistas (desconfiança nos dados sensoriais, o movimento da natureza que torna o conhecimento instável, a relatividade do conhecimento às circunstâncias do indivíduo que conhece).
- O ceticismo como indagação (no sentido explicitado acima) teve início com Pirro (daí, o pirronismo). Pirro nunca escreveu uma obra filosófica. Como Platão, considerava a filosofia muito mais como uma prática, uma atitude, um modus vivendi do que uma doutrina, uma teoria, um saber sistemático.
- Tímon, discípulo de Pirro, relata três respostas do mestre a três questões fundamentais: 1) Qual a natureza das coisas? Nem os sentidos nem a razão nos permitem conhecer as coisas tal como são, e todas as tentativas resultam em fracasso; 2) Como devemos agir em relação à realidade que nos cerca? Mais exatamente: porque não podemos conhecer a natureza das coisas, devemos evitar assumir posições acerca disto. 3) Quais as conseqüências dessa nossa atitude? O distanciamento que mantemos leva-nos à tranqüilidade.
- Para os céticos, também, a felicidade se realiza com o mínimo possível. Repouso era a única reação para o homem verdadeiramente sábio.
- O único caminho para a paz era o não-julgamento. Ao invés de promover o caos e a confusão, aceitar o bem e o mal era a única maneira de viver.
- É dessa forma que devemos entender o objetivo primordial da filosofia de Pirro: atingir a imperturbabilidade, alcançando a felicidade.
- O ceticismo compartilha com as principais escolas do helenismo – o estoicismo e o epicurismo – uma preocupação essencialmente ética, ou prática.
- Segundo conta Diógenes Laércio, filósofo do cinismo, Pirro teria, com seu mestre Anaxarco, acompanhado Alexandre até à Índia e, com isso, aprendido os ensinamentos dos “sábios nus” (faquires e mestres iogues), que praticavam o distanciamento e a indiferença às sensações. Esta seria uma possível origem às noções céticas de ausência de sensação (apatia) e inação, que caracterizariam a tranqüilidade.
- Entretanto, o problema prático, tão caro aos helenistas de maneira geral, permanece: dada a ausência de critério para a decisão sobre a verdade ou não de uma proposição, como agir na vida concreta? Com o propósito de solucionar o impasse, Arcesilau recorreu à noção de razoável. Já que não podemos ter certeza sobre nada, já que é impossível determinar um critério de verdade, resta-nos o razoável.

19- O Cinismo

- Os cínicos não eram filósofos no sentido de “colocarem seu sistema no papiro”. Eram mais um testemunho vivo da filosofia da não-conformidade. Acreditava-se que eram homens sábios errantes e cômicos sarcásticos, provocando diversão às custas da hipocrisia da sociedade.
- Antístenes foi o fundador dos Cínicos. Estudou com o sofista Górgias, mas abraçou os princípios socráticos (acreditava que a virtude era a chave para uma vida feliz e a recompensa em si mesma. Acreditava em uma força divina, mas não era monoteísta, e achava que esse terreno, por ser incognoscível, não devia ser muito analisado). Simulava comportamento sujo, inclusive nas vestes e na barba. Rebelava-se contra o que considerava extravagâncias de sua época. Os cínicos podiam ser considerados os hippies da era helênica (Mannion, 2004).
- O mais famoso dos cínicos foi Diógenes. Viveu a tempo de conhecer Alexandre, o Grande. Levava uma vida de desabrigado, vestindo túnicas rasgadas, mendigando por comida, dormindo nas ruas e até mesmo em barris (Mannion, 2004, p. 45).


A filosofia cristã (patrística) e a filosofia da Idade Média (escolástica)


20- A filosofia cristã (filosofia patrística – século I ao século VII)

- Após o Período de Evangelização, quando a fé cristã foi disseminada em todo o mundo conhecido, pelos missionários, houve a codificação e sistematização do dogma da Igreja Oficial de Roma (esse período de codificação foi justamente o patrístico).
- O nome patrística advém da filosofia dos chamados Padres da Igreja, primeiros dirigentes espirituais e políticos do cristianismo após a morte dos apóstolos. A patrística é resultado dos trabalhos feitos pelos apóstolos intelectuais, Paulo e João, e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar o cristianismo (nova religião) com o pensamento filosófico dos gregos e romanos. Isso na tentativa de convencer os pagãos da nova verdade (revelada) e em convertê-los a ela, promovendo uma verdadeira envangelização.
- A patrística é dividida em grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e italiana (Igreja de Roma).
- A patrística introduziu novas idéias e revelou novas verdades a respeito da concepção do mundo, dos homens e do universo em geral. Essas idéias eram desconhecidas dos filósofos greco-romanos antigos. São as principais: o mundo foi criado divinamente a partir do nada; o homem é um pecador desde o ato original cometido por Adão; Deus é, ao mesmo tempo, três (santíssima trindade); houve a encarnação e morte de Deus; é possível a ressurreição dos mortos; há um juízo final; além de outras idéias.
- A implantação dessas idéias veio acompanhada de algumas explicações ainda fortemente presentes nas crendices (crenças), como, por exemplo, a explicação de que o mal existe no mundo e que o homem é pecador, embora Deus seja infinitamente bondoso, onisciente, onipresente, perfeito e puro.
- Com Santo Agostinho e Boécio foi introduzida a noção de “homem interior” (da consciência moral
e do livre arbítrio da vontade). A partir dessa idéia (de liberdade e vontade), joga-se, para o homem, a responsabilidade da existência do mal no mundo.
- A verdade revelada era imposta por intermédio da Bíblia (revelações de Deus e dos Santos). Como uma espécie de decretos, essas revelações tornaram-se dogmas, ou seja, verdades irrefutáveis e incontrastáveis.
- A partir daí, portanto, surge uma diferença entre verdades da razão (humanas, naturais, investigadas) e verdade reveladas (da fé, sobrenaturais). Ademais, a noção de conhecimento recebido por uma graça divina (revelado) é tido como superior em relação ao conhecimento racional.
- A verdade cristã contava, claro, com o fator psicológico e o conforto que suas premissas traziam ao povo.
- O grande tema da filosofia patrística era a possibilidade (ou impossibilidade) de conciliar (em prol de uma adesão de fiéis) razão e fé.

- Santo Agostinho (354–430 d.C): primeiro grande filósofo da era cristã, representa uma ponte entre os mundos clássico e medieval.
- Teve uma juventude conturbada, entregue à libertinagem. Quando um pouco mais velho, optou por estudar o neoplatonismo (na época ainda rival popular da doutrina da Igreja). Posteriormente se converteu, tornou-se padre, e depois Bispo de Hippo (África do Norte, onde nascera).
- Agostinho utilizou o neoplatonismo para defender, apoiar e afirmar a teologia cristã. A filosofia e a fé foram, assim, mescladas na síntese de Agostinho. Agostinho pretendeu explicar alguns dos mistérios cristãos por intermédio da filosofia platônica.
- O que Agostinho fez foi “cristianizar” Platão, pois a verdade cristã deveria ser o ponto de partida, vez que dogmática.
- Os conceitos platônicos das formas, idéias, verdades eternas e do bem surgiram, segundo a filosofia de Agostinho, de Deus. Mais importante do que especulações e buscas intelectuais, esses conceitos devem ser iluminações divinas. Assim, o verdadeiro entendimento não vem apenas de um esforço intelectual, mas, também e principalmente, de uma certa intervenção divina.
- Uma grande questão tratada por Agostinho foi a do livre-arbítrio e Deus. Ora, se Deus é onisciente e todo-poderoso, como isso concorda com a noção do livre-arbítrio e da existência do mal no mundo. E mais, como os homens poderiam ser pecadores? Responsáveis por suas ações, se Deus já sabia de antemão o que seria praticado pelo homem?
- A resposta conciliadora de Agostinho é que Deus vive em um reino Eterno em que o tempo linear nada significa. Ou seja, o tempo conforme medimos é insignificante pra Deus. Não há passado nem presente, há somente o Presente Eterno, o Grande Agora. Esse é o estado natural de Deus. Portanto, a sabedoria infinita de Deus e sua onisciência não possuem nenhuma influência em nosso livre-arbítrio. A responsabilidade pessoal ainda governa a condição humana.
- Ainda assim, Deus nos guia, bastando que nós o busquemos.
- Outra grande questão tratada foi a do Pecado Original (a culpa indesejada nos foi entregue por Adão e Eva no Jardim do Paraíso). Em virtude da sua juventude voluptuosa, Agostinho era inteiramente consciente dos pecados da carne.
- Mas, se Deus, que é perfeito e infinitamente bondoso, criou o mundo, como poderia florescer uma desobediência extrema desse tipo? Em relação à confirmação do Pecado Original, Agostinho deu outra explicação: O mal não é uma força diabólica destruindo a alma dos pecadores, mas sim simples ausência de bondade. Assim, o inferno não seria o que é comumente concebido ainda nos dias de hoje.
- O mal não foi criado por Deus. O mal, na verdade, é o resultado da distância entre Deus e a realidade material. Assim, diferentemente do bom, o mal não acontece de propósito.
- Quanto à alma humana, ela não foi criada diretamente por Deus bondoso, mas pelos pais de cada um, que conseqüentemente são filhos distantes de Adão, o pecador original. Agostinho diz isso para evitar que haja a mácula vertical entre o bondoso e perfeito criador e o homem pecador.
- O inferno, nos termos acima, não existe como purgatório para as almas pecadoras. Para não cair em contradição, Agostinho cria o Limbo como o lugar para o qual as almas pecadoras por natureza (peccatum naturae) vão após a morte. O Limbo é um lugar neutro, sem gozo nem tormento, destinado a essas almas sem mérito nem demérito pessoal. Agostinho não era reencarnacionista.
- O pecado do homem é o próprio castigo, uma descida no redemoinho do nada (segundo Agostinho, o pecado, a ausência de bondade, é um terrível vazio). O pecador é o maior prejudicado (mesmo em relação a quem sofreu o mal cometido por ele), e só por meio da misericórdia de Deus é que ele pode ser salvo.
- O problema de Agostinho foi pregar, em sua tese desenvolvida em A Cidade de Deus, que o reino terrestre deveria paulatinamente se transformar na cidade divina. Isso porque o filósofo confundiu a cidade de Deus com a Igreja Organizada e ignorou o “Reino de Deus dentro do homem”. Essa tese acabou por permitir que a Igreja se desvirtuasse e degenerasse numa organização funcional, jurídica, política, financeira e militar, e, assim, substituísse a Força do Espírito pelo espírito da força (Rohden apud Oliveira, 2000, p. 66). A partir daquele momento, entendeu-se absurdamente que quem quisesse participar da Igreja invisível da comunhão dos santos, tinha que pertencer também à sociedade eclesiástica externa e visível.

21- A filosofia medieval (escolástica - século VIII ao século XIV)

- Na época, a Igreja Romana dominava toda a Europa.
- Essa filosofia era constituída por pensadores europeus, árabes e judeus. Foi denominada, também, de escolástica porque fora ensinada nas escolas a partir do século XII.
- Época em que Igreja e Estado permaneciam intimamente relacionados. A Igreja ungia e coroava os reis. Havia a concepção de subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos.
- Durante esse período surge propriamente a filosofia cristã, que é, na verdade, a teologia.
- As principais influências da filosofia medieval eram Platão, Aristóteles e Santo Agostinho.
- Um dos temas mais recorrentes, por provação racional, é a existência de Deus e a imortalidade da alma humana.
- O pensamento na Idade Média estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma idéia é considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma fonte reconhecida (textos sagrados de um papa ou de um santo, a bíblia, Platão, Aristóteles).
- As idéias filosóficas eram exposta por um método que ficou conhecido como disputa, em que se apresentava uma tese e ela tinha que ser defendida ou refutada com base exclusivamente em argumentos encontrados nos textos de autoridade.

- São Tomás de Aquino (1225 – 1274 d.C): monge dominicano de Nápoles.
- Com esteio na pregação de Agostinho de que o que salva o homem de suas mazelas existenciais é a Igreja organizada e jurídica, acabou por consolidar a Igreja de uma vez por todas, com a sanção posterior do Concílio de Trento, no século XVI (1545–1563, organizado pelo Papa Paulo III. Concílio da Contra-Reforma
que buscou assegurar a unidade de fé e disciplina eclesiástica, emitindo numerosos decretos disciplinares. Na época foi criada a lista de livros proibidos e reorganizada a Inquisição).
- Tomás de Aquino afirmou em sua Suma Teológica, embora sem prever as conseqüências, que a autoridade eclesiástica tinha o direito de punir com a morte os hereges impenitentes. Essa afirmação de autoridade causou horrores durante a Santa Inquisição (pois, com base nela, a Igreja perseguiu e matou muita gente).
- Em menos de três séculos, a filosofia de Tomás de Aquino foi primeiramente condenada, depois amplamente aceita, culminando-se em sua titulação de Doutor da Igreja e sua canonização. Obviamente o uso da filosofia tomista, que foi de grande significação para a Igreja, passou por instrumentalizações políticas e desvirtuações parciais. Mas a obra tomista em si é de grande valia argumentativa e conceitual, sendo uma contribuição fundamental para o pensamento filosófico.
- Preocupou-se em cristianizar as idéias de Aristóteles. Por isso, também reconciliou o dilema entre fé e razão. “A partir daí, morreu de vez o Cristianismo axiológico, qualitativo, vertical do Cristo, para nascer, em seu lugar, o Cristianismo sociológico, quantitativo e horizontal das igrejas cristãs” (Oliveira, 2000, p. 67).
- O raciocínio tomista tornou-se típico da época medieval e foi refutado posteriormente pelos modernos, pois era rigidamente sistemático (característica aristotélica) e, ao final, tornou-se empobrecido em virtude de sua grande repetição.
- Ocupou-se com as provas lógicas (com base na teoria aristotélica) para a demonstração da existência de Deus. As cinco vias da prova de existência de Deus de Tomás de Aquino, que contrasta com a prova ontológica de Santo Anselmo
, é um argumento fundamental a toda a sua filosofia, e toca uma das questões mais centrais do pensamento medieval, a demonstração racional, filosófica portanto, da existência de Deus, numa articulação entre razão e fé.
- Segundo ele, sobre a demonstração da existência de Deus, temos que: a) não conhecemos diretamente a essência de Deus, ou seja, Deus não é auto-evidente, precisando ser demonstrado por intermédio daquilo que conhecemos; b) podemos demonstrar a existência de Deus a partir do que Ele não é e dos efeitos por ele emanados que nos são conhecidos. As cinco vias são as seguintes:

1) a primeira se baseia no movimento, que se caracteriza pela passagem de potência a ato. Ora, só algo que existe em ato pode fazer com que algo que exista em potência passe a ato. Quer dizer, tudo o que move é movido por algo imóvel, já que não se pode admitir uma regressão ao infinito. Deus é o primeiro motor;
2) A segunda passa pela noção de causa eficiente aristotélica. Nada pode ser causa eficiente de si próprio, pois seria anterior a si próprio. Deus então é a primeira causa eficiente;
3) A terceira toma por base os argumentos aristotélicos de necessidade e contingência. Nem tudo na natureza pode se contingente, senão o nada existiria. Há algo de eterno. E o que existe só existe a partir do que existiu antes. Deus é o primeiro ser, origem de toda a necessidade (tudo o que é necessário).
4) A quarta parte dos graus existentes na coisas (Aristóteles). Todas as coisas têm predicados e qualidades, que são medidos a partir de parâmetros de perfeição. Pressupõe-se, então, a existência de um parâmetro máximo. Ora, Deus é Ser Perfeito, perfeição entendida como o máximo de realização de atributos de qualidades.
5) Parte da noção de finalidade, ou causa final, argumento teleológico. Deve haver um propósito ou finalidade na natureza, caso contrário o universo não tenderia para o mesmo fim ou resultado. A causa inteligente dessa determinação é Deus.

- Embora muitos desses argumentos pudessem ser contestados (e o foram pelos modernos), como as premissas aristotélicas de movimento e finalidade, além da concepção de que há um ser perfeito que não precisa ser explicado, a teoria de Tomás de Aquino é importante pela abertura a um novo caminho para o tratamento dessas questões (Marcondes, 2005a, p. 130).
- Tratam-se essencialmente de argumentos que buscam provar a existência de Deus a partir da razão natural.
- De outro turno, os argumentos de Tomás de Aquino abrem caminho para uma re-valorização, no espírito do aristotelismo, do mundo natural como objeto de conhecimento.
- Conhecemos Deus pela sua obra, seus efeitos, a Criação, a Natureza, o mundo criado. O Criador sempre deixa sua marca no que Cria.
- Com tudo isso, abriu-se, no final da Idade Média, um novo caminho para a ciência e a filosofia, prenunciando as grandes transformações pelas quais passou o mundo europeu ocidental nos séculos que se seguiram.


A Renascença e as origens do pensamento moderno


22- A Filosofia da Renascença (séculos XIV ao XVI d.C)


- A filosofia ocidental se firmou no início do período moderno, a partir do Renascimento no século XV e ao longo do Iluminismo, no século XVIII. A religião ainda exercia sua influência, mas gradualmente perdia a predominância sobre o pensamento em geral. A ciência ascendeu ao primeiro plano do pensamento humano. Mas o pensamento científico, por não oferecer respostas completas a várias questões, não se impôs de imediato. Ele teve de ser formulado e ajustado aos outros tipos de idéias religiosas e morais. No decurso, a filosofia emergiu como uma solução possível para os conflitos entre ciência e religião e entre ciência e moralidade. A filosofia atingiu, assim, uma importância entre pessoas em geral. Novas possibilidades para a existência humana estavam emergindo e a filosofia buscava lhes dar explicações.
- No período da Renascença, houve uma descoberta de obras desconhecidas, na Idade Média, de Platão, e de novas obras de Aristóteles, que passaram a ser lidas em original (grego) e receber novas traduções e leituras mais fiéis.
- Na obra do sofista Protágoras, os humanistas encontraram o lema para o período: “O homem é a medida de todas as coisas”. Isso demonstra a clara ruptura com o pensamento medieval e sua visão de mundo fortemente hierarquizada.
- O valor à dignidade do homem se opõe à sua “miséria” medieval. A liberdade do homem é valorizada no campo ético. O homem é o centro da criação, concebido como um microcosmo que reproduz em si a harmonia do cosmo (ou melhor, do macrocosmo).
- Na arte, houve uma recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e romanos e a imitação deles (deixando para trás a beleza estética medieval).
- Havia, na política, o resgate da vida ativa e da república tal como apareciam nas obras da antiguidade (“imitação dos antigos”). Além do mais, com esteio na ética epicurista e estóica, pregava-se, para a política, a prevalência do equilíbrio e da moderação.
- Havia um interesse maior pela retórica, pela gramática e pela dialética, vista como arte de argumentar em público.
- O homem, dotado de conhecimentos técnicos, políticos, artísticos e sendo, por isso, artífice de seu próprio destino, passa a ser valorizado em sua liberdade e em seu poder criador/transformador (por isso o humanismo é o traço predominante na Renascença).
- As pessoas são criativas porque têm condensadas, em si, todos os aspectos da realidade aos quais recorrer. De acordo com essa visão, o homem é um pequeno mundo para si próprio. Somos todos o centro de nosso próprio universo. Essa concepção dá ao homem a idéia de que o que ele pode fazer é uma amostra do que Deus pode fazer. Por isso as várias realizações e criações que tornaram célebre o Renascimento: pintura, escultura, literatura, bem como os avanços da ciência, medicina, engenharia e filosofia.
- A época contou com o fomento cultural dado pelas navegações marítimas e o conhecimento de novas terras e novas gentes (o que permitiu ao homem desenvolver uma visão crítica de sua sociedade). Essa efervescência cultural culminou em questionamentos e críticas profundas à Igreja Romana e na Reforma Protestante.
- São dessa época Dante, Maquiavel, Giordano Bruno, Montaigne, Tomas Morus, Jean Bodin Kepler e outros.
- A defesa do heliocentrismo levou Giordano Bruno para a fogueira (padre italiano que adaptou e expandiu suas idéias para a ciência heliocêntrica de Copérnico: 1548-1600).


23- A Filosofia Moderna (século XVII a meados do XVIII)

- Época do Grande Racionalismo, que procura vencer o pessimismo teórico (ceticismo).
- Esse ceticismo se baseava na dúvida de a capacidade da razão humana poder conhecer a realidade exterior ao homem. Isso porque a época fora precedida de guerras religiosas, conhecimento de novos mundos, novos povos e culturas, e as disputas e querelas teóricas e filosóficas fizeram com que os sábios já não mais pudessem admitir que a razão humana fosse capaz do conhecimento verdadeiro e que a verdade fosse universal e necessária. O sábio tornou-se cético.
- Acrescente-se, ainda, que na época da renascença houve a volta à leitura dos gregos, principalmente os helenistas (dentre os quais os céticos), preocupados mais com questões práticas e sociais ao invés de espirituais e transcendentais que preocuparam os medievais.
- Para a superação desse ceticismo, a Filosofia moderna, ou o Grande Racionalismo, propõe uma mudança teórica essencial: a Filosofia parte, agora, para uma análise da capacidade racional do homem, ao invés de voltar o começo de seu trabalho para a natureza ou para Deus. Começa, então, a refletir sobre o sujeito do conhecimento primeiro, para depois partir para a análise do objeto.
- Sujeito: consciência de si reflexiva.
- As coisas exteriores (natureza, instituições sociais e políticas) passam a ser conhecidas por intermédio das representações intelectuais do sujeito. Quer dizer que essas coisas exteriores são conhecidas no limite da apreensão do sujeito cognoscente por meio de idéias que só dependem das operações racionais realizadas por ele mesmo.
- A Razão, além de tudo isso, se arroga capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e das emoções (como fez Freud, mais tarde, por exemplo), e capaz de orientar, dominar e governar a vontade, de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional (como fez Kant, por exemplo).
- Introduz-se, na época, o ideal de progresso (ciência ativa X ciência contemplativa).
- A mesma convicção orienta o racionalismo político. O homem acredita que a razão pode definir para cada sociedade qual o melhor regime político e sua manutenção racional.
- Para a política, introduz-se, com Michel Montaigne (1533-1592), a noção de tolerância. A visão cética de Montaigne tem, na verdade, uma dimensão mais ética do que epistemológica (de conhecimento) ao defender um ideal de vida equilibrado e moderado. Ele defende a necessidade de adoção de uma atitude de tolerância religiosa no momento em que a França se encontrava dividida entre católicos e protestantes em guerra. Segundo Montaigne, não temos argumentos racionais para a defesa da religião, todos os argumentos sendo questionáveis pelo ceticismo; não há portanto porque defender uma determinada religião contra as outras em um sentido tão radical que leve à guerra, à morte e à destruição. A fé não necessita de defesa racional, ou de argumentos a seu favor, por ser uma experiência do indivíduo, e é nisso que se apóia. Essa noção de tolerância na religião se converte, em conseqüência, para a política.


O Racionalismo


Renêe Descartes (1596-1650) e o Racionalismo

- O ceticismo era muito recorrente na época. Voltara com grande força em razão de que as verdades religiosas já não mais conseguiam convencer as pessoas. Descartes, contudo, pretendia pesquisar um fundamento de todo o conhecimento, um ponto de partida para a construção da ciência de uma maneira que suas verdades (científicas) ficassem imunes ao ceticismo. Para tanto, Descartes se despiu de suas crenças e adotou, para superar o ceticismo completamente, um posicionamento inicial radicalmente cético.
- Descartes começou, então, a duvidar de tudo (não havia certeza nem mesmo no campo da matemática), até perceber que isso podia levá-lo à beira da loucura (duvidar de exatamente tudo, nos leva à loucura). Descartes chegou a, até mesmo, duvidar se estava acordado ou sonhando, porque, mesmo dormindo, temos a sensação de estarmos vivenciando as coisas como se estivéssemos em vigília. Essa teoria ficou conhecida como Hipótese do Sonho e é o ceticismo radical levado à máxima conseqüência. Ceticismo radical porque, mesmo em vigília, nada me garante, ceticamente falando, que não estou sonhando, e vice-versa.
- Mas Descartes, intentando refutar o ceticismo (cujos argumentos, para ele, deveriam ser levados a sério) e em busca de um conhecimento verdadeiro, procurou um fato inquestionável a partir do qual poderíamos derivar todo o entendimento (Descartes partiu de um posicionamento inicialmente cético, levando-o às últimas conseqüências, para, a partir disso, combatê-lo).
- Concluiu, então, que, se se duvidasse de tudo, a única coisa de que se podia ter certeza é que o homem pensa. Mesmo que eu coloque tudo em dúvida, pensando não poder ter certeza de nada, a dúvida ainda me resta. Ora, a dúvida é uma forma de pensamento, portanto duvidar é pensar. Isso mostra que a existência do pensamento não pode ser colocada em dúvida” (Marcondes, 2005b, p. 77).
- Por isso o “penso, logo existo” (cogito, ergo sum). Essa certeza é imune ao questionamento cético.
- Tudo podia ser questionado, mas uma coisa permanecia um fato: o pensamento do homem, sua consciência. Mesmo num mundo caótico, onde quer que você vá, você estará lá (consciência de si, da sua existência, pelo pensamento).
- O “argumento do cogito” serve, assim, como o fundamento seguro para o filósofo construa o edifício do conhecimento.
- O conhecimento da natureza, a “leitura do livro do mundo”, só pode ter valor se for precedido e acompanhado do autoconhecimento, da reflexão sobre o próprio sujeito do conhecimento (isso influenciou pensadores modernos como Kant, que pesquisaram o limite da razão humana para o conhecimento).
- O argumento do cogito de Descartes (ou seja, a incontestável existência do pensamento e da consciência humana, o que valeria de ponto de partida para a ciência) leva a um solipsismo, o isolamento do eu em relação a tudo mais. A certeza do eu estava demonstrada, mas como demonstrar a certeza da realidade externa, fora do homem? Ora, Descartes pretendia fundamentar a possibilidade do conhecimento científico, construir as bases metodológicas para uma ciência mais sólida. Só poderia haver ciência quando o pensamento formular leis e princípios que expliquem como o real funciona.
- Descartes precisava, então, de uma ponte entre o pensamento subjetivo (o puro pensamento - idealismo) e a realidade objetiva.
- Ele apela, para tanto, a Deus. Passa a se ocupar da prova de Sua existência. Descartes tenta superar, com essa ponte, o seu idealismo, atingindo um realismo.
- Descartes tentou provar a existência de Deus nos moldes do que fizeram Santo Anselmo e Santo Tomás de Aquino (de forma negativa, ou seja, a partir do que sabemos que Deus não é). Descartes usou, inclusive, o argumento do Perfeito como paradigma – Mannion, 2004, p. 88 e Marcondes, 2005a, p. 171).
- Descartes diz que a idéias de Deus é uma idéia inata, possuindo clareza e distinção. Todos os seres humanos, desde que nascem, trazem consigo, de forma inata, uma idéia de perfeição, a partir da qual julga e compreende todas as coisas da realidade.
- Quer dizer que, para entendermos a realidade externa, precisamos de um paradigma de perfeição, que, para Descartes, só pode ser Deus. Trata-se de uma idéia inata, colocada em mim por Deus, “a marca do criador em sua obra”. Se Deus é entendido como Ser perfeito, então devemos reconhecer a sua existência (porque a perfeição é um paradigma inato no homem). Pode-se, assim, chegar a idéia de Deus (inata) a partir do próprio cogito, sem nada supor de externo.
- A partir do argumento ontológico (recativo ao ser, ao existir): “se Deus é entendido como Ser perfeito, devemos então reconhecer [necessariamente] sua existência”, passa-se da idéia de Deus para a afirmação da existência de Deus – que não é mais uma mera idéia, existindo independente do cogito, além da pura idéia. Descartes consegue, com isso, romper com o solipsismo e construir uma ponte para fora de si mesmo, podendo agora afirmar, com toda certeza, a existência de algo além do cogito.
- O argumento cosmológico terá, como conseqüência, a possibilidade de afirmar que Deus é o criador do mundo externo, servindo portanto de garantia à existência do mundo e à possibilidade de o homem conhecer o mundo.

- Depois Descartes voltou a teorizar acerca da realidade. Concebeu que ela se compunha de duas substâncias: a do pensamento (nossas mentes); e a substância ampliada (nossos corpos físicos). Daí o dualismo cartesiano.
- Segundo o dualismo cartesiano, a mente e o corpo são separados. A mente é imbuída (penetrada) pelo espírito. Os sentimentos, as paixões, tinham que ser vistas sob suspeita e serem controladas.

- A partir da exposição acima, podemos ter uma idéia de porque Descartes inaugurou uma corrente denominada Racionalismo. O Racionalismo parte da crença de que há coisas que podem ser conhecidas independentemente da existência de experiências sensoriais e confiança nelas. As idéias inatas são primordiais, e as informações reunidas pela experiência são chamadas secundárias.
- Descartes e os Racionalistas defendem, dessarte, que nem todas as idéias que tem o homem advêm da experiência sensorial. Algumas idéias já existiam e estão na nossa mente, prontas para serem acessadas. São as chamadas idéias inatas. São inatas as noções de moralidade, matemática, lógica, e a idéia de Deus. São inatas, também, as idéias de infinito e de perfeição, e as de “noções comuns da razão”, como, por exemplo, o todo é maior que as partes (Chauí, 2005, p. 70).
- Além das idéias inatas, há as idéias adventícias (da experiência, ou acidentais), que formamos a partir de nossa experiência e que dependem de nossa percepção sensível, estando, portanto, sujeitas à dúvida; e as idéias da imaginação (fictícias), que formamos em nossa mente a partir dos elementos de nossa experiência, como por exemplo a idéia de unicórnio, que resulta da idéia de chifre junto à idéia de cavalo.

- Voltando-se à questão da proposta de Descartes, há que se perguntar se sua teoria supera o ceticismo. Viu-se que depois do argumento do cogito (idealismo), ele empreendeu um caminho que o leva à contemplação do verdadeiro Deus até o conhecimento das coisas (realismo).
- Sem a prova da existência de Deus, Descartes jamais teria conseguido superar o solipsismo e estabelecer a possibilidade do conhecimento científico (investigação externa) em bases sólidas. Mas essa é realmente uma boa saída para a sua proposta de superação do ceticismo?
- A teoria de Descartes, com efeito, não afastou o ceticismo. Encontrou objeções mesmo em seu tempo.
- Em razão de que Descartes admitiu, certa vez (resposta às segundas objeções), que nossas verdades não são verdadeiras ou falsas “em um sentido absoluto”, mas apenas que “temos toda a certeza que podemos razoavelmente desejar”, cai por terra a definição clássica do conhecimento científico como certeza absoluta, como verdade universal e necessária. Após Descartes, no pensamento moderno, essa concepção clássica jamais poderá ser retomada como tal.
- Resta-nos de Descartes, dessa forma, o método da dúvida. Podemos considerar que a grande contribuição de Descartes à filosofia, do ponto de vista da questão do método e da fundamentação do conhecimento, é o germe da atitude crítica introduzida pela dúvida. Essa atitude dá início ao desenvolvimento da longa reflexão sobre os limites do conhecimento humano.

O Empirismo inglês

- O empirismo é uma posição filosófica que toma a experiência como guia e critério de validade de suas afirmações, sobretudo nos campos da teoria do conhecimento e da filosofia da ciência. Constituiu-se a partir do século XVI (juntamente com o racionalismo).
- É uma forma de saber derivado da experiência sensível e de dados acumulados com base nessa experiência, permitindo a realização de fins práticos. Todo conhecimento resulta da elaboração e do desenvolvimento desses dados.
- O lema do empirismo é a frase de aspiração aristotélica: “nada vai ao intelecto sem que passe primeiro pelos sentidos”.
- Os empiristas rejeitam a noção de idéias inatas e idéias anteriores à experiência sensível.
- O empirismo valoriza a experiência humana, a realidade concreta, a atividade do indivíduo e tem o seu espírito contrário à filosofia especulativa e aos grandes sistemas teóricos.
- A ciência experimental da natureza teve um grande desenvolvimento nesse período na Inglaterra. Dentre os cientistas mais destacados estava Willian Harvey e Isaac Newton.

David Hume (1711-1776)

- Conhecido como o mais radical dos empiristas. Assumiu uma posição filosófica cética.
- Como os demais empiristas, disse que nossas idéias sobre o real se originam de nossa experiência sensível.
- Hume reclamou dos filósofos que equivocadamente fazem suposições sobre a razão baseados em fatos, e sobre fatos baseados na razão, para obterem idéias metafísicas a respeito da realidade. Deus, o eu e a causalidade são algumas dessas idéias equivocadas. Não podemos prová-las, nem as relacionando a outras idéias nem por experimento.
- A percepção é o critério de validade das idéias. Quanto mais próximas da percepção que as originou, mais nítidas e fortes são, ao passo que, quanto mais abstratas e remotas, menos nítidas se tornam, empalidecendo e perdendo sua força.
- Pelo associacionismo, as impressões sensoriais se reúnem para formar idéias. Nossas impressões são atraídas umas pelas outras, assim como ocorre com os corpos celestes.
- A idéia de Deus, correspondendo a um ser infinitamente inteligente, sábio e bom, surge das reflexões que fazemos sobre as operações de nossa própria mente, aumentando sem limites essas qualidades de bondade e sabedoria. A idéia não é inata, ela surge no homem depois de ele ter experimentado várias coisas e projetado os ideais de perfeição para elas.
- As idéias são sempre de natureza particular; é apenas ao associá-las a termos (palavras) gerais que produzimos o efeito de generalidade. O universal resulta, assim, desse processo de associação e da força de nosso hábito ou costume. Não há idéias universais e inatas.
- O ceticismo de Hume pode ser interpretado a partir de seu questionamento sobre a causalidade e a identidade pessoal.
- A noção de causalidade remonta aos pré-socráticos. Resumidamente, essa noção é a crença na existência de um princípio causal que relaciona os fenômenos naturais, constituindo-se em uma lei universal, explicando a própria racionalidade do real em termos da relação causa-efeito, e estabelecendo assim um nexo, um elo causal entre tudo o que acontece.
- O questionamento de Hume sobre a realidade objetiva desse princípio causal pode ser explicado através do exemplo de uma mesa de bilhar. A bola branca toca a primeira dentre as outras, a qual, por sua vez, bate na segunda e assim por diante. Tudo o que podemos ver é o impacto do taco nas bolas e as bolas entre elas, mas não vemos a causalidade propriamente dita por meio do movimento dessas bolas. Tudo o que a experiência nos revela é uma conjunção constante entre fenômenos, e não uma conexão necessária que chamamos de causalidade.
- O conhecimento da relação de causalidade, para Hume, não se obtém pelo raciocínio a priori (da razão pura, sem a experiência), mas que ela nasce inteiramente da experiência quando descobrimos que objetos particulares estão em conjunção uns com os outros. Segundo Hume, a experiência nos diz que objetos semelhantes sempre se encontram em conexão com objetos semelhantes (nós próprios fazemos associações para entendermos as coisas). Disso, podemos definir uma causa como um objeto seguido de outro.
- A causalidade é, assim, nada mais que um hábito psíquico do qual se utiliza o homem para dar sentido de ligação às associações, para dar sentido a uma certa sucessão de fatos.
- Tudo o que existe na realidade se resume à memória de nossa experiência sensível, que ordena os fenômenos e objetos de acordo com a semelhança. Para Hume, portanto, a causalidade resulta apenas de uma regularidade ou repetição em nossa experiência de uma conjunção constante entre fenômenos que, por força do hábito, acabamos por projetar na realidade, tratando-a como se fosse algo existente.
- A causalidade é uma maneira do homem perceber o real, uma idéia derivada da reflexão sobre as operações de nossa própria mente, não sendo uma conexão necessária entre causa e efeito, uma característica do mundo natural.
- Sobre o modelo cartesiano de mente como substância pensante, a res cogitans, Hume tece sua crítica à identidade pessoal. Hume diz que não podemos ter nenhuma representação de nossa mente independente de nossa experiência, ou seja, de nossas impressões sensíveis e da maneira como as elaboramos. Não há como nos representarmos o pensamento puro, independente de qualquer conteúdo.
- Para Hume, jamais posso apreender a mim mesmo sem algum tipo de percepção. O eu nada mais é do que um feixe de percepções que podem variar de acordo com o momento (eu percebo o “eu”. E o perceber já é sensível). Nesse sentido, não somos agora o mesmo que fomos algum tempo atrás, nem mesmo o que seremos dentro em pouco, pois a cada momento novas percepções são acrescentadas ao feixe, e outras empalidecem ou desaparecem. Tudo o que temos, novamente, é a força do hábito, do costume, da memória, e é apenas isso que assegura a continuidade do que consideramos o eu.
- Conseqüentemente, para Hume, esta idéia da substância pensante (inata) de Descartes simplesmente não existe.
- Quanto à ciência, Hume diz que o único critério de certeza que podemos ter é a probabilidade. Se a causalidade e a identidade do eu resultam apenas de regularidade, repetição, costume e hábito, então jamais temos um conhecimento certo e definitivo. Toda ciência é apenas resultado da indução.



A síntese filosófica entre o racionalismo e o empirismo por Kant


Immanuel
Kant (1724-1804)

- Kant, no compasso do Iluminismo e empenhado em suas inspirações de poder libertar o homem das amarras que lhes são impostas pela ignorância e pela superstição, advoga que o pensamento deve ser autônomo e não-tutelado. Só assim o homem pode atingir a sua maioridade (é como se o homem estritamente voltado às crenças sociais e religiosas estivesse na sua menoridade).
- O Iluminismo volta-se contra toda autoridade que não esteja submetida à razão e à experiência, que não possa justificar-se racionalmente, que recorra ao medo, à superstição, à força, à submissão.
- A maioridade do homem, ou seja, a possibilidade de pensar por si mesmo, de modo independente, traz consigo um caráter ético e emancipador.
- O Esclarecimento (aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado (aqui já se vê a idéia de autodisciplina como necessária à emancipação). A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo (ou crença, ou autoridade). Há que se ter a decisão e coragem de servir-se de si mesmo para o entendimento. Tem coragem de fazer uso de seu próprio entendimento! É o lema do Esclarecimento. O homem livre é senhor de si também no sentido de que deve exercer controle sobre si e agir sempre de acordo com sua vontade e decisão racional livre.

- Kant assume que David Hume o despertou de seu sonho dogmático (de acreditar “cegamente” na razão como a única fonte do conhecimento). A partir desse momento, Kant desenvolve sua teoria crítica na intenção de resguardar a razão contra o empirismo cético (Marcondes, 2005a, p. 207), apesar de reconhecer, com Hume, a validade, também, do conhecimento empírico. Antes dessa fase, Kant era conhecido como “racionalista dogmático”.
- Sua filosofia caracterizou-se, então, como racionalismo crítico. Pretendia, essencialmente, superar a dicotomia entre racionalismo e empirismo (Chauí vê a tentativa de Kant como conciliadora entre as duas correntes: a cartesiana, racionalista, inatista e a empirista de Bacon e Hume – 2005. p. 75 e ss.).
- O filósofo deve investigar as fontes do saber humano, a extensão do uso possível e útil de todo o saber, e os limites da razão (este último o mais difícil, porém mais necessário na perspectiva de Kant). Parte-se da idéia de que a razão do homem e sua capacidade de conhecer as coisas possui limites. A razão humana possui limites. Pretende-se, portanto, investigar quais são essas limitações e de que maneira o entendimento humano se forma.
- Só com a introdução da crítica é que a batalha entre as várias correntes e doutrinas pode ser superada. A crítica se opõe ao dogmatismo e pretende uma síntese entre racionalismo e empirismo.
- Na crítica da razão pura, Kant trata da razão teórica, isto é, no uso da razão no conhecimento da realidade. Há que se estabelecer critérios de demarcação entre o que podemos legitimamente conhecer e as falsas pretensões ao conhecimento.
- Kant pretende combater o dogmatismo, que, para ele, é o procedimento dogmático da razão sem uma crítica precedente de seu próprio poder. A tarefa da crítica consiste assim em examinar os limites da razão teórica e estabelecer os critérios de um conhecimento legítimo.
- Pretende uma revolução copernicana para a filosofia. Assim como Copérnico descobriu, para a astrologia, que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas o contrário (heliocentrismo), Kant pretende demonstrar que não é o sujeito que se orienta pelo objeto (o real), como quis a tradição, mas o objeto é que é determinado pelo sujeito do conhecimento (de acordo com suas limitações racionais. O sujeito vê os objetos de forma amoldada à sua capacidade. Os objetos podem ser mais do que a razão humana é capaz de perceber). Kant argumenta, na esteira do que Copérnico demonstrou, que pela nossa experiência temos a impressão (sensível), olhando para o céu todos os dias, de que é o Sol que gira em torno da Terra. Mas, apesar de nossos sentidos (principalmente a visão) nos apresentar esse fenômeno, Copérnico demonstrou racionalmente que era a Terra que girava em torno do Sol. Kant, então, pretendeu, por sua vez, para a filosofia, empreender a mesma revolução, dizendo que o homem, por meio de sua razão limitada, é que determina e qualifica os objetos.
- No conhecimento do objeto, pelo sujeito (o homem), há a contribuição de duas faculdades de nossa mente, ou de nossa razão, a sensibilidade e o entendimento (vê-se, aqui, que Kant considera importante o que Hume disse sobre o conhecimento sensível).
- Se há a contribuição dessas duas categorias, a da sensibilidade (dos sentidos) e a do entendimento (da razão), como estabelecer o modelo de relacionamento entre elas?
- Na Crítica da razão pura, Kant investiga, portanto, as condições pelas quais o conhecimento é possível. A crítica se dirige às faculdades da razão em geral, seus limites e capacidades (o sujeito do conhecimento volta-se para a sua própria razão pra investigar os limites que ela tem e a forma pela qual o conhecimento do homem é formado).
- Há que se ocupar, portanto, com o conhecimento transcendental, que se ocupa menos dos objetos e mais de nossa forma de conhecer, que deve ser a priori (independente da experiência).
- Kant esclarece que, para se atingir o conhecimento, são necessários tanto o racionalismo (com categorias inatas), quanto o empirismo (com experiências sensíveis). Os dois trabalhando em conjunto. Mas como isso se dá?
- Nossos conhecimentos começam sempre com a experiência, mas não são todos que provêm dela. Há alguns conhecimentos que são inatos, que estão na mente do homem, que nasceram com ele, que são necessários para que o homem relacione (ligue) os objetos do conhecimento, lhes dê relação de causalidade e os reconheça enquanto tais. Depois de reconhecidos os objetos, o homem busca um conceito no qual o objeto pode se enquadrar.
- A razão é, assim, uma estrutura vazia, sem conteúdos. Essa estrutura é universal e inata. A razão é, do ponto de vista do conhecimento, anterior à experiência e independente dela. É, portanto, a priori.
- Já os conteúdos que o sujeito conhece e sobre os quais ela pensa, esses sim, dependem da experiência. Sem ela, a razão seria sempre vazia, inoperante, nada conheceria.

* Experiência – nos dá a matéria, os conteúdos – é a posteriori
* Razão – nos fornece uma forma, estrutura para podermos relacionar objetos e dar sentido ao nosso conhecimento – essa estrutura é a priori

- A experiência, portanto, ao contrário do que defendem os empiristas, não é a causa das idéias, mas a ocasião para que a razão, recebendo a matéria, formule as idéias. A experiência fornece a matéria (os conteúdos) do conhecimento para a razão e esta, por sua vez, fornece a forma (universal e necessária) do conhecimento.
- Ao contrário do que dizem os inatistas, o conteúdo ou a matéria não são inatos, sendo inata apenas a estrutura da razão. E ao contrário do que dizem os empiristas, a estrutura da razão não é adquirida pela experiência ou causada por meio do hábito e da repetição.
- Por isso Kant diz que o conhecimento é a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência.

- Sobre a estrutura da razão, Kant esclarece que ela é constituída por três estruturas a priori (Chauí, 2005, p. 77): 1) a estrutura ou forma da sensibilidade (estrutura da percepção sensível ou sensorial – que nos possibilita perceber a experiência dos sentidos); 2) a estrutura ou forma do entendimento, isto é, do intelecto ou da inteligência (que nos permite entender os objetos vindos da experiência); 3) a estrutura ou forma da razão propriamente dita (que não se relaciona nem com os conteúdos da sensibilidade nem com os conteúdos do entendimento, mas apenas consigo mesma).
- A função da razão, nesses termos, não é a de conhecer as coisas, tanto é que sozinha (sem a experiência de conteúdos) ela não consegue. A função da razão é a de regular e controlar a sensibilidade e o entendimento. A razão é a função reguladora da atividade do sujeito do conhecimento.

- Importante: o que nos permite ter percepções é a chamada forma da sensibilidade (aquilo sem o que a percepção seria impossível). Percebemos todas as coisas como dotadas de figura, dimensões (altura, largura, comprimento), grandeza; ou seja, nós percebemos as coisas como realidades espaciais. Nada pode ser percebido por nós sem as características espaciais. Assim, o espaço não é algo percebido, mas é o que permite haver percepção. Por isso, ele é uma das formas a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes e sem a experiência.
- Outra forma a priori de sensibilidade é o tempo. Isso porque só percebemos as coisas como simultâneas ou sucessivas. Ou seja, percebemos as coisas como realidades temporais. Não percebemos o tempo, mas ele também é condição de possibilidade da percepção das coisas.
- A percepção recebe conteúdos da experiência e a sensibilidade os organiza racionalmente segundo a forma do espaço e tempo. Essa capacidade de organização espaço-temporal dos objetos do conhecimento que é inata, universal e necessária.

- A organização racional que nos permite o entendimento transforma as percepções em conhecimentos intelectuais ou em conceitos. Para tanto, o entendimento possui a priori um conjunto de elementos que organizam os conteúdos empíricos, elementos que são denominados categorias. Essas categorias também são condições para o conhecimento. Com essas categorias a priori, o sujeito do conhecimento formula os conceitos.
- Exemplos dessas categorias que organizam os dados da experiência são a qualidade, a quantidade, a causalidade, a finalidade, a verdade, a falsidade, a universalidade, a particularidade. Assim, longe de essas características serem hábitos psicológicos associativos (como queriam os empiristas - Hume), elas são instrumentos racionais com os quais o sujeito do conhecimento organiza a realidade e a conhece. As categorias são também, em si, estruturas vazias, iguais para todos os entes racionais. Graças à universalidade e à necessidade das categorias, as ciências são possíveis e válidas. O conhecimento é, nesses termos, racional e verdadeiro para os seres humanos.
- Por último, vale lembrar que a razão está em nós, não nas coisas. A razão é sempre razão subjetiva e não pode pretender conhecer a realidade tal como ela seria em si mesma, nem pode pretender que exista uma razão objetiva governando as próprias coisas. A razão humana só pode conhecer os fenômenos, a realidade tal como é organizada pela razão, ela não conhece a realidade em si, ou seja, fora da razão.


Hegel, Marx, e a problemática filosófica do século XX


Georg W. Friedrich Hegel (1770-1831)

- Sua filosofia é fortemente sistemática e procura incluir em um sistema integrado todos os grandes temas e questões da tradição filosófica, da ética à metafísica, da filosofia da natureza à filosofia do direito, da lógica à estética. Marcondes diz que “se trata do último grande sistema filosófico. Depois de Hegel a concepção de uma filosofia sistemática entra em crise, em grande parte devido às críticas à pretensão hegeliana feitas ao longo do século XIX por filósofos como Schopenhauer, Kierkegaard, Marx e Nietzsche, dentre outros” (2005a, p. 216).
- Ainda se posiciona num projeto de uma filosofia crítica, assim como Kant, embora o critique. Hegel permanece dentro da mesma linha de desenvolvimento do racionalismo moderno, inaugurado pela tentativa de Descartes de encontrar um ponto de partida radical e fundamentar a possibilidade do conhecimento na consciência, no sujeito pensante.

- A moralidade e a vontade objetiva. Hegel critica Kant e Rousseau por considerarem a moralidade do homem a partir da concepção humana cristã, individualista. Partem da idéia de indivíduo dotado de razão e impulsos como se essa concepção do homem fosse intemporal, alheia ao tempo e à cultura. Hegel diz que eles não perceberam que o homem do qual tratavam era apenas uma figura do indivíduo moderno, cuja noção nasceu com o advento do cristianismo. Eles erram, portanto, ao conceber uma ética universal e intemporal para o homem.
- Para Hegel, a moralidade é constituída por uma vontade objetiva englobada na interiorização de nossa cultura. A vontade objetiva é uma vontade impessoal, coletiva, social, pública e historicamente determinada. Esse querer impessoal, social e histórico cria as instituições sociais, políticas, religiosas, artísticas... A moralidade é, assim, um sistema regulador da vida coletiva por meio dos costumes e dos valores de uma sociedade, numa época determinada. A moralidade (totalidade formada pelas instituições família, religião, artes, técnicas, ciências, relações de trabalho, organização política) educa os indivíduos para interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura.
- Kant e Rousseau estabeleceram as relações entre indivíduos com laços muito frágeis, de forma direta entre pessoas, quando deveriam ter tomado com base nos laços fortes das relações sociais, fixadas pelas instituições sociais. Segundo Hegel, as relações pessoais entre os indivíduos são determinadas e mediadas por suas relações sociais. São essas relações sociais que determinam a vida ética ou moral do indivíduo.

- A crítica de Hegel a Kant: Hegel critica a concepção kantiana de um sujeito transcendental como excessivamente formal, a consciência considerada como dada, como originária (a priori), sem que Kant se ocupasse em investigar e perguntar pela sua origem, pelo processo de formação da subjetividade.
- Descartes e Kant buscaram critérios seguros sobre a validade de nossos juízos para, a partir deles, e só com eles, determinar a certeza de nosso conhecimento. Mas Hegel diz que não há como investigar criticamente a faculdade cognitiva antes do conhecimento. Seria como querer nadar antes de cair na água. A investigação da faculdade cognitiva é ela própria conhecimento, e não se pode chegar a esse objetivo (de conhecer o modo operandi das faculdades da razão e perquirir a validade de nossos juízos) porque este objetivo já é pressuposto desde o início.
- Hegel questiona, dessarte, a filosofia crítica como propedêutica, ou seja, como introdução, como preparação (ao estudo de outra ciência). A filosofia não pode ser entendida pura e simplesmente como instrumento do saber antes do saber.
- Sobre a analítica transcendental de Kant, como exame dos meios de conhecimento, Hegel diz que ela parte de um modelo que separa, indevidamente, sujeito e objeto. Ou seja, o instrumento kantiano para o conhecimento supõe essa separação enquanto o meio (o ambiente social) altera o objeto segundo a própria natureza do meio intermediário; com isso não há a possibilidade de um saber absoluto
- Mas como Kant, por exemplo, Hegel pretende buscar, também, o Absoluto. Parte, para tanto, da questão consciência e história (Marcondes, 2005a, p. 218). No prefácio à filosofia do direito (1821), ele esclarece que “o que quer que aconteça, cada indivíduo é sempre filho de sua época; portanto, a filosofia é a sua época tal como apreendida pelo pensamento [...]”.
- Hegel ressalta que os erros dos inatistas, dos empiristas e do próprio Kant advieram da não compreensão do que há de mais fundamental e essencial à razão: ela é histórica!
- A reflexão filosófica deve partir de um exame do processo (através da história) de formação da consciência. Por intermédio da consciência crítica de nossa situação histórica podemos entender o próprio processo histórico, as “leis da história”, seu sentido e direção e, apenas dessa forma podemos ir além da consciência de nosso tempo.
- A explicação para essa historicidade no pensamento de Hegel consiste em que é apenas ao traçar o caminho pelo qual a razão humana se desenvolveu que podemos entender o que somos hoje. Explicitamos assim o sentido da história, sua direção.
- O processo de formação da consciência hegeliano é composto por três elementos básicos: 1) as relações morais, isto é, a família ou a vida social (o indivíduo só se torna um sujeito - e obtém a consciência dessa condição - na medida em que é reconhecido como tal pelo Outro); 2) a linguagem ou os processos de simbolização (a síntese do múltiplo de nossa experiência sensível depende do emprego de símbolos – palavras - que nós próprios produzimos); 3) o trabalho, ou a maneira como o homem interage com a natureza (tida como objeto) para dela extrair seus meios de subsistência (elemento que será fundamentalmente valorizado por Marx).
- Hegel, assim, diferentemente de Kant, não concebe a unidade da autoconsciência como originária, só podendo ser concebida como resultado de um processo de desenvolvimento que se caracteriza por essas três dimensões básicas.
- A identidade da consciência não pode ser anterior ao processo de conhecimento (a priori).
- Na obra “Fenomenologia do Espírito”, Hegel propõe uma teoria universal do conhecimento. Trata da auto-apreensão da consciência (percepção da própria consciência) em suas transformações a partir da apreensão das transformações do objeto da mesma consciência.
- A experiência que a consciência tem de si mesma corresponde à existência de uma lei interna do progresso em direção a um novo conhecimento e ao fato de ela seguir esta lei ao transformar-se a si mesma para se dirigir ao objeto (e se transforma na história).
- A partir da experiência completa de si mesma, a consciência pode chegar ao conhecimento daquilo que é em si mesma. A fenomenologia descreve o itinerário da alma que se eleva a Espírito por meio da consciência (e com o passar do tempo).
- O modo de compreensão do indivíduo é necessariamente histórico. Hegel pretende incorporar à filosofia uma reflexão sobre o seu tempo. Toda consciência compreende seu lugar na história e, assim, compreende-se como resultado desse processo histórico.
- Todas as correntes filosóficas e os filósofos foram fruto de seu tempo, e todos são válidos porquanto englobam o que há de importante na corrente anterior, num processo dialético (tese – antítese – síntese: a teoria superior supera a inferior, mas o processo deve incluir tanto a primeira teoria quanto a segunda - as fases se conservam).
- Todas as correntes filosóficas, desde Tales de Mileto, possuem ligação com o todo que Hegel concebe. Hegel estabelece que há elos entre as diferentes correntes filosóficas e períodos nos quais surgiram.
- A superação da oposição entre as correntes, em uma visão de Absoluto, só pode ser empreendida pela dialética hegeliana.
- A “Fenomenologia do Espírito” traça a história do espírito humano (espírito, para Hegel, em termos mais contemporâneos, pode ser denominado cultura – Marcondes, 2005a, p. 220), a elevação da consciência do conhecimento sensível ao saber Absoluto.

- A infelicidade: A consciência infeliz. A infelicidade na tomada da consciência de si é um dilaceramento no interior do próprio ser. A consciência se vê em luta contra a natureza, sente-se solitária e melancólica, devido à sua separação da realidade (dicotomia), do objeto que vê como distante de si. A filosofia começa assim: a insatisfação de uma consciência dilacerada por seu estado de divisão interna.
- É preciso, no entanto, superar as falsas oposições que produzem a infelicidade, o mal-estar (mas há que se passar pela infelicidade para se atingir a felicidade). Passamos à razão observadora e ativa que envolve uma mudança de atitude em relação ao mundo, do qual não mais se afasta, mas busca observá-lo para atuar nele.
- Nessa seara, o Espírito Subjetivo cede lugar ao Objetivo, que se manifesta pela moral, do direito e da história, e finalmente ao Espírito Absoluto, por meio da arte e, por fim, da filosofia.

QUADRO SINÓTICO (Marcondes, 2005a, p. 224):

· O sistema filosófico de Hegel é o último grande sistema da tradição moderna.
· Hegel coloca a história no centro de seu sistema, mostrando que o modo de compreensão filosófico é necessariamente histórico.
· Critica a filosofia de Kant por não se perguntar nem pela origem nem pelo processo de formação da consciência subjetiva, considerada de um ponto de vista formal e abstrato.
· Em sua interpretação do processo de formação da consciência e da marcha do Espírito até o saber Absoluto adota um método dialético.

Karl Marx (1818-1883)

- “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (crítica de Marx a Feuerbach, um filósofo hegeliano).
- Marx considera a filosofia teórica da tradição como uma simples forma de idealismo, desvinculada da realidade social concreta e, nesse sentido, inútil.
- Marx pretende buscar um método filosófico para combater as ilusões da consciência e, assim, libertar o homem (porque a consciência individual universal – como em Kant – separada e até mesmo em oposição às outras consciências – é uma consciência, para Marx, alienada).
- Marx é um filósofo crítico que procura radicalizar ainda mais o projeto de crítica da modernidade. Ele considera Hegel não suficientemente crítico. Sua crítica a Hegel (e aos hegelianos) diz respeito a seu idealismo.
- Marx diz que a interpretação hegeliana do processo histórico e da formação da consciência restringe-se ao plano das idéias e representações, do saber e da cultura, não levando em conta as bases materiais da sociedade em que este saber e esta cultura são produzidos e em que a consciência individual é formada. O exame crítico de Hegel não é suficientemente radical, não chegando a examinar as causas últimas, os pressupostos mais fundamentais. Das três dimensões da formação da consciência de Hegel (vida moral, linguagem e trabalho), Marx privilegia o trabalho como a mais fundamental.
- Para Marx, o trabalho é a praxis (prática) social e histórica do homem. É a relação dos seres humanos com a natureza e entre si, na produção das condições de sua existência. Nesse ponto, Marx chaga a afirmar, juntamente com Engels, no Manifesto, que os seres humanos não se distinguem dos animais porque possuem consciência, nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos, mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual.
- Em Marx, ao contrário de Hegel, as idéias do homem são determinadas pela “terra”, pelas condições materiais de sua vida. A consciência humana não é livre, ela é condicionada pelo trabalho.
- Marx concluiu, por suas pesquisas, que “as relações legais e as formas políticas não poderiam ser explicadas, seja por si mesmas, seja como provenientes do assim chamado desenvolvimento geral da mente humana, mas que, ao contrário, elas se originam das condições materiais da vida ou da totalidade que Hegel, seguindo o exemplo dos pensadores do século XVIII, engloba no termo ‘sociedade civil’“ (apud Marcondes, 2005a, p. 228).
- A questão central da análise de Marx passa a ser portanto o trabalho (que ele diz ser a relação invariante entre a espécie humana e seu ambiente natural, uma perpétua necessidade natural da vida humana).
- O trabalho é um sistema de ação instrumental e contingente. Ele surge na evolução da espécie, mas condiciona nosso conhecimento da natureza ao interesse no possível controle técnico dos processos naturais.
- O mundo que existimos é, nesse sentido, constituído pela relação material de trabalho do homem com a natureza. Dependendo da organização social do trabalho, a objetificação da natureza (adoção da natureza como objeto de conhecimento) muda na história. Mas não só a natureza é alterada, também o é o próprio homem (não há uma essência humana fixa).
- A História é a verdadeira história natural do homem. O materialismo histórico de Marx pretende ser uma teoria científica da história. Ele analisa os diferentes estágios, caracterizados pelo conceito de relações de produção, que levaram a humanidade, desde a sociedade primitiva, passando pela sociedade escravocrata e pela sociedade feudal, até a sociedade burguesa de sua época.
- Para Marx, a filosofia, conforme até então concebida, estava esgotada, de modo que a sua filosofia é conhecida com a do fim da história. Para Marx, a filosofia indica a necessidade da prática revolucionária de “transformar o mundo”. A análise filosófica tem que se estender à economia, política, história, sociologia. E a reflexão teórica deve dar lugar a uma prática revolucionária transformadora, por meio de uma concepção de unidade entre teoria e prática.

- Sobre a crítica da Ideologia: No texto A Ideologia alemã, Marx critica os filósofos hegelianos sustentando que eles, na tentativa de criticar a religião em prol de uma emancipação calcada no iluminismo, acabam por ignorar que a própria religião é instrumento das classes dominantes para preservar o poder político e econômico, e não a causa dessa dominação (a religião seria o ópio do povo).
- Marx e Engels concebem o termo ideologia como falsa consciência, atribuindo-lhe um sentido negativo. A análise de Feuerbach, no caso, acaba sendo ideológica, porque não investiga criticamente as verdadeiras causas do fenômeno religioso.
- A ideologia seria, assim, o mascaramento da realidade – se uma realidade opressora que faz com que o seu caráter negativo seja ocultado. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção intelectual. As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas como idéias.
- A representação da classe dominante como sendo a verdadeira realidade produz uma aparente legitimação das condições existentes numa determinada sociedade. Produz-se, com isso, uma forma de alienação da consciência humana de sua situação real de existência (as relações de produção). A tarefa da ideologia é evitar que a estrutura social profundamente desigual seja percebida por todos no nível da consciência.
- A tarefa da filosofia crítica é desmascarar a ideologia. No entanto, se a filosofia não leva em conta as origens materiais da ideologia na relação de dominação existente na sociedade, ela torna-se inócua, senão uma parte da ideologia.
- Por fim, vale ressaltar que, para Marx, a sociedade civil é mesmo o que os teóricos do liberalismo disseram, uma esfera econômica de interesses privados, é a economia de mercado capitalista. E o Estado, longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral, é a expressão legal, jurídica e policial, dos interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante.

- A revolução: em uma sociedade determinada, no seu processo histórico de luta de classes, os conflitos e as contradições internas do próprio processo de dominação vão levar à crise dos sistemas econômicos e políticos, tornando possível a transformação da sociedade pela via da revolução.
- E, como disse no Manifesto do Partido Comunista, “em lugar da velha sociedade, com suas classes e seus antagonismos de classe, teremos uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.
- Marx acreditava que a revolução ocorreria, por iniciativa do povo trabalhador, na Inglaterra, o país capitalista mais avançado na época e, portanto, com um proletariado mais organizado e consciente e com crises externas mais explícitas. Lênin, contudo, acreditou que poderia implantar o socialismo na Rússia, um país essencialmente agrícola, sem um proletariado forte. Lênin amoldou a doutrina de Marx, pois dela retirou, em certa medida, a herança hegeliana do forte determinismo histórico, enfatizando o papel do indivíduo, do intelectual revolucionário e do partido como vanguarda do proletariado.

- A razão instrumental (técnica) como forma de racionalidade dominante no Ocidente: Marx teria priorizado, segundo alguns de seus críticos atuais como Jurgen Habermas, a concepção de razão instrumental. A antropologia marxista fundamentada no processo de trabalho e no fator produção (em lugar da reflexão) teria priorizado e só considerado a racionalidade humana instrumental (que serve para fazer alguma coisa, que sempre tem um fim técnico e útil). Isso teria desembocado, hodiernamente, na colonização do mundo-da-vida pelo interesse técnico-instrumental.
- Habermas critica o modelo antropológico de Marx dizendo que é reducionista. Isso porque, para uma emancipação humana efetiva, é necessário mais do que o interesse instrumental-técnico como recurso de controle sobre as forças naturais e de liberação das contingências econômicas. A forma de interação social não pode ser pelo paradigma da produção e trabalho somente. Habermas diz que é pelo paradigma da comunicação. Afinal, não se interage só pelo trabalho.

A crítica à modernidade – problemática filosófica do século XX

A Escola de Frankfurt

- O saber tecnicista relega o interesse pela emancipação. A crítica dos frankfurtianos se volta à racionalidade técnica e instrumental que teria dominado a sociedade moderna com a Revolução Industrial. O diagnóstico da presença e império desse tipo de saber na sociedade atual levou os filósofos frankfurtianos ao pessimismo em relação à capacidade emancipatória do homem (diferente, todavia, em Habermas, crente ainda num projeto moderno de racionalidade pela comunicação e pelo consenso entre indivíduos racionais e livres – a modernidade é, para ele, um projeto inacabado).
- Alguns dos aspectos centrais dessa dominação da técnica são a indústria cultural (e a arte como mercadoria) e a massificação do conhecimento, da arte e da cultura que produzem, diluindo assim sua força expressiva, seu significado próprio, transformando tudo em objeto de consumo.
- Os frankfurtianos não são essencialmente revolucionários, eles apenas buscam inspiração na teoria marxista para uma análise da sociedade contemporânea, além de desenvolver o conceito de teoria crítica e de crítica da ideologia em uma perspectiva filosófica e sociológica.




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