terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O DIREITO ESPARTANO

1. Os Espartanos
A região onde vigorosamente floresceu Esparta e outras tantas cidadesestado
tornou-se conhecida por Lacônia. Aquela que foi a maior potência militar da Grécia
Antiga situava-se às margens do rio Eurontes, num local cercado por imponentes
montanhas. Ela foi primeiramente habitada pelos aqueus, os quais foram sucedidos pela
chegada de hordas invasoras de dórios, povo indo-europeu que assumiu uma índole
tradicionalmente belicosa. É a eles que se referem os filósofos e demais escritores gregos
quando usam o termo ‘lacedemônios’.
O homem de Esparta, desde a mais tenra meninice, costumava ser talhado
para se tornar um guerreiro por excelência. Este ideal, como parte da educação estatal, era
patrioticamente seguido por todos os cidadãos. Com apenas sete anos de idade, o infante
iniciava seu rígido treinamento nas forças armadas. Num país onde se privilegiava a cultura
militar, não é de se estranhar que a perfeição física era almejada a todo custo pelo cidadão
comum. Destarte, era hábito corriqueiro entre os espartanos, o de lançar suas crianças indesejadas de altos penhascos. Esta forma de eugenia ocorria na hipótese de haver a menor
suspeita de que os bebês não estariam aptos a se tornar bons combatentes no futuro.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que o orgulho nacional se assenhoreava
poderosamente das mentes e dos corações dos espartanos. Eles faziam questão absoluta de
diferir em tudo dos demais gregos, de modo que eram logo reconhecidos pelos seus trajes e
aparência grandiosa. Os soldados espartanos usavam cabelos longos presos por pequenas
tiras. A cabeça era coberta por um elmo dourado que continha uma longa proteção para os
maxilares. Das costas sobressaía uma capa vermelha que alcançava facilmente os
calcanhares. Utilizavam também uma espada cuidadosamente forjada e empunhavam um
escudo circular com diversos símbolos de sua venerada pátria, dentre os quais se destacava
uma ave, o galo.
O espírito de xenofobia impregnava sobremaneira o cotidiano dos
homens de Esparta. Eles, mais do que ninguém, se julgavam ‘iguais entre si’, porém,
‘superiores’ a toda e qualquer pessoa da Antiga Hélade.
O soldado espartano não esperava ser recebido numa espécie de “paraíso
celestial” após a sua morte, como aguardavam ansiosamente os romanos em sua jornada
final rumo aos “Campos Elísios”. Todavia, conduziam sua existência de forma obstinada,
com o intuito de construir uma reputação sólida que lhe permitisse imortalizar seus feitos
pelas gerações vindouras. Não temiam a morte e lutavam até o extenuar de suas forças.
Depreciavam o inimigo e geralmente não mostravam clemência no campo de batalha, pois
a covardia lhes parecia um comportamento extremamente odioso. Os espartanos sabiam
reverenciar seus heróis. Arnaoutoglou, tendo como fundamento as informações de Plutarco,
observa que era regra entre eles “escrever o nome do morto na lápide sepulcral, se morreu
em combate”.
Sabe-se que em Esparta, a coragem sempre foi uma virtude de capital
importância para a construção do caráter de um homem. Ora, não se pode esquecer que o
próprio Platão, inspirado nesse ideal, era inteiramente partidário da valentia e sagacidade
em combate. Não deve causar nenhuma surpresa o fato de que uma sociedade
demasiadamente afeita à beligerância como a espartana simbolizasse o “padrão modelar”
de conduta a que se referiu o notório pensador grego.
Sob o aspecto político, pode-se dizer que Esparta era regida por uma
espécie sui generis de diarquia real de caráter hereditário. Os reis vinham de duas famílias
aristocráticas – a dos Ágidas e a dos Euripôntidas - que desde tempos imemoriais, por
ocasião da imigração dórica para a Lacônia, mantinham seus privilégios intocados.
O poder monárquico naquele país, todavia, não era de modo algum
absoluto. Aristóteles ressalta que esta curiosa estrutura estatal encontrava-se prevista na
própria lei do país:
“Quanto à realeza, não é este o lugar de examinar se esta forma de governo é a menos
vantajosa para um Estado. Julga-se, porém, o melhor mérito dos reis pela vida e pelas
façanhas de cada um deles do que, como aqui, pela nobreza da raça. O legislador nem mesmo
acreditou que podia tornar os seus nem bons nem virtuosos; parece até desconfiar deles como
de pessoas que não têm virtudes bastantes. Foi por esta mesma razão que na política
lacedemônia se associavam na mesma embaixada pessoas inimigas, e ali sempre se
considerou a discórdia dos reis como a salvação da República”.
Mas como se organizava Esparta politicamente? Qual era a função
principal de cada uma de suas instituições? Jaeger, em sua “Paidéia” , buscou lançar luz à
questão: “Os dois reis heráclitas, sem poder político na época histórica e que só no campo
de batalha retomavam a importância original, eram um remanescente dos antigos reis dos
exércitos do tempo das invasões dóricas e proviriam talvez do fato de se proclamarem reis,
conjuntamente, os dois chefes de duas hordas. A assembléia do povo espartano não é outra
coisa senão a antiga comunidade guerreira. Não há nela qualquer discussão. Limita-se a
votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida no Conselho de Anciãos. Este tem
o direito de dissolver a assembléia e pode retirar da votação as propostas com resultado
desfavorável. O eforato é a autoridade mais poderosa do Estado e reduz ao mínimo o
poder político da realeza. A sua organização representa um poder moderador no conflito de
forças entre os senhores e o povo. Concede ao povo um mínimo de direitos e conserva o
caráter autoritário da vida pública tradicional. É significativo que o eforato seja a única
instituição não atribuída à legislação de Licurgo”.
O comando das forças armadas também não estava submetido, pelo
menos em primeiro plano, como seria de se imaginar, aos dois reis, mas ao titular de um
cargo chamado de “almirante”, o qual detinha o controle direto sobre o órgão estatal que
Aristóteles intitulou de “departamento da marinha”.
Vale ressaltar que os reis eram auxiliados por um “Conselho de Anciãos”
que, no dizer de Políbios, possuía ‘mandato vitalício’. Ademais, “...toda a alta
administração do Estado se concentrava nas mãos dessas autoridades”.
Porém, se o Estado espartano vinculava a educação de seus homens ao
incondicional apego às armas, como poderia sustentar-se internamente? Ora, é sabido que
os dórios cuidaram de subjugar todos aqueles que habitavam nas cercanias de Esparta. Esta
grande massa de pessoas escravizadas – os hilotas – foi progressivamente dominada por um
poder irresistível que se assenhoreava de tudo e de todos nos arredores do Peloponeso. Esta
gente, uma vez subjugada, foi condenada a dedicar-se a inúmeros trabalhos forçados,
mormente, com vistas a garantir uma produção agrícola mínima capaz de propiciar a
subsistência de um imenso contingente de guerreiros e da classe aristocrática do país. Esta
condição exigia, como era de se esperar, um estado de permanente atenção por parte dos
espartanos no sentido de evitar sublevações. Havia uma especial razão para essa preocupação, afinal, as revoltas eram constantes nesse contexto de subordinação e exigiam
imediato rechaço.
Nos arredores da cidade-estado também viviam os chamados periecos,
descendentes dos aqueus, a antiga população autóctone. Não se pode dar como certo se
estes possuíam a cidadania espartana. Estes primeiros habitantes do país eram considerados
pelos espartanos como sendo de menor estirpe, pois não eram de origem dória. Apesar
disso, os periecos encontravam-se numa condição infinitamente mais favorável que aquela
dos hilotas. Como bem sugere Jaeger, estes constituíam “uma classe popular, livre, operária
e camponesa”.
A coragem espartana se fez de grande utilidade por ocasião de uma
circunstância que alteraria drasticamente o cotidiano da Hélade. Estamos nos reportando
especificamente às chamadas “Guerras Médicas” (500 a.C. – 449 a.C.). Esta sucessão de
batalhas que teve como palco o território da Grécia Antiga obrigou os helenos a se unirem
para refrear os ímpetos do poderoso Império Persa. Até então, nunca se havia presenciado
um contingente tão numeroso quanto aquele dos exércitos invasores que marchavam
confiantemente desde o Oriente rumo às terras balcânicas. Os soldados de Esparta,
liderados por Leônidas, lutaram bravamente na estratégica defesa de uma praia. O famoso
episódio nas Termóphilas (480 a.C.) marcou o imaginário dos poetas e pensadores que
contaram às gerações que se seguiram todo o heroísmo e a obstinação dos guerreiros da Lacônia.
É sabido que os espartanos viviam numa comunidade fechada e
desconfiavam sobremaneira dos estrangeiros. Torna-se evidente que este exclusivismo não
impediu Esparta de se aliar a várias outras tantas cidades-estado constituindo com elas
‘anfictionias’ (ligas internacionais) quando as conveniências reclamaram a derrocada de
Atenas - sua maior rival. Os eventos que retratam a eclosão da animosidade ocorreram
entre os anos de 431 a.C. e 404 a.C., quando o mundo grego dividiu-se na célebre “Guerra
do Peloponeso”. Ora, cada parte envolvida neste célebre conflito buscou conquistar para si
o apoio das cidades-estado de sua região. É bem verdade que Esparta venceu naquela
ocasião, mas, incontestavelmente, a crise contribuiu para que em apenas poucas décadas,
ascendesse um novo poder hegemônico no universo helênico: a Macedônia de Filipe II e de
seu famoso filho conquistador, Alexandre Magno.
O primeiro sinal de declínio de Esparta foi sua queda ante a eficiente
coalizão orquestrada em 387 a.C. por Tebas, Argos, Corinto e Atenas. Seu último suspiro,
no entanto, teve lugar já no séc. IV da Era Cristã, mais precisamente no ano de 396, quando
falanges visigodas destroem a cidade que, durante quase um milênio de existência, tipificou
a coragem do heleno no campo de batalha.
2. O Direito Espartano e a Constituição de Licurgo
A maior dificuldade para o estudo do direito na Grécia Antiga reside na
exigüidade de fontes disponíveis. Cumpre ressaltar que nem sempre se tornou possível ao
especialista encontrar codificações ou excertos legislativos nos sítios arqueológicos
pesquisados que fossem úteis à consolidação de uma leitura sistêmica, como foram aqueles
de Gortina ou Atenas, que permitiram que se chegasse a conclusões mais ou menos
satisfatórias do ponto de vista legal.
Assim, coube aos pesquisadores buscar efetivar a composição final deste
imenso quebra-cabeças por intermédio da literatura, dos tratados políticos e da rica poesia
helênica. Quando se trata de reconstituir o passado jurídico de cidades-estado importantes
como Esparta, o desafio se torna ainda infinitamente maior, uma vez que esta, como já foi
dito, não exerceu qualquer influência no campo das especulações filosóficas. Portanto, de
grande valia e raridade reveste-se qualquer obra do gênero que na atualidade venha a
fornecer alguma pista sobre o assunto. Uma a merecer destaque aqui é aquela intitulada
“Spartan Law” - da autoria de D. M. Macdowell20 – renomado professor e pesquisador
escocês dedicado ao conhecimento da História da Grécia Antiga.
Antes de mais nada, convém admitir que a lei escrita de Esparta, lá chamada de “rhetra”, acabou por se perder na espessa cortina dos tempos. Seu significado etimológico, conforme anota Jacqueline de Romilly, está correlacionado ao sentido do verbo “dizer”. Vale ressaltar que todo o conhecimento de que dela dispomos emana, precariamente, de escritos como os de Xenofonte, Platão, Plutarco, Tucídides, Heródoto, Políbios e, em grande parte, do gênio de Aristóteles. O notável estagirita, vale dizer, cuidou de fazer um valioso comentário sobre a ‘Constituição da Lacedemônia” - obra jurídica credenciada a um certo “Licurgo”. A fama daquele que teria sido o primeiro legislador de Atenas assumiu proporções legendárias no Período Clássico, porém, a bem da verdade, dele pouco se sabe. Alguns atribuem ao mesmo o mérito de ter elaborado não somente a legislação de Esparta, mas também o de ter conferido, por meio de uma festejada reforma, a estrutura política que concedeu a feição final de um estado eminentemente militarista.
Quando tudo isso teria ocorrido? As datas são incertas, mas há uma certa tendência entre os
especialistas em apontar para o início do séc. VIII a.C.
Não obstante às inúmeras controvérsias que pairam sobre o assunto,
Aristóteles jamais colocou em xeque a historicidade de Licurgo. Certamente, o filósofo teve
acesso, ainda que tardiamente, a fontes que não chegaram até nossos dias. Em sua retórica
comparativa, podem-se perceber as diversas facetas do Direito de Esparta. O legislador
espartano teria se amparado, no dizer de Aristóteles, nas linhas gerais do Direito Cretense.
É mister que se diga que dois outros filósofos gregos cuidaram de redigir
escritos específicos que tratam da percepção jurídica desenvolvida nas terras da Lacônia. O
primeiro deles foi Xenofonte (427 a.C. – 355 a.C.), pensador grego que conhecia muito de
perto a vida militar, pois havia acompanhado pessoalmente como soldado a campanha de
Ciro, o famoso comandante persa descrito na Bíblia Sagrada. No contexto em questão,
chama-se a atenção para a “Constituição dos Lacedemônios”, obra de sua autoria.
Plutarco (45 d.C. – 120 d.C.), natural de Queronéia, é o segundo nome a
figurar aqui. É preciso observar, entretanto, que o mesmo recorreu a fontes tardias e,
portanto, de menor confiabilidade que aquelas anteriormente utilizadas por Aristóteles,
Platão ou pelo próprio Xenofonte. Com iniciativa digna de nota Plutarco, a seu turno, optou
por dedicar-se a esboçar uma espécie de biografia do legislador de Esparta, a qual ficou
conhecida como “A Vida de Licurgo”. Porém, já à época em questão, os feitos heróicos de
Esparta, bem como de seu legislador já eram parte integrante de mitos, contos populares e
da poesia helênica.
Igualmente, uma interessante informação sobre Licurgo pode ser
encontrada na obra de Heródoto. Aquele que seria considerado o ‘pai da história’
fundamenta-se, segundo suas próprias considerações, na tradição oral lacedemônia para
traçar o perfil do legislador em questão. Ele teria sido, nas palavras de Heródoto, tutor de
seu sobrinho Leobotes, um dos primeiros reis de Esparta.
Pelas palavras de Heródoto, soube-se que Licurgo foi venerado por
gerações no santuário que lhe fôra dedicado, apesar dos lacedemônios terem entendido
posteriormente que havia a necessidade de aprimorar as reformas de seu maior ícone
político. Contudo, a suposta originalidade de Licurgo no ato de elaboração das leis da
cidade é ainda um tanto que discutível. Klabin sustenta que “...ele, em grande parte, teria
transformado em leis os costumes pré-existentes”.
Na lição de Jaeger, tem-se o seguinte: “Esta pretensa legislação é o
contrário do que os Gregos costumavam entender por legislação. Não é uma compilação de
leis particularizadas, civis e públicas, mas sim o nomos, no sentido original da palavra: uma
tradição oral válida, da qual apenas algumas leis fundamentais e solenes – as rhetra – foram
fixadas por escrito. Entre estas estão as que se relacionam com as atribuições das
assembléias populares, mencionadas por Plutarco. As fontes antigas não consideram esta
faceta como resíduo de um estágio primitivo. Pelo contrário, e em oposição à mania
legisladora da democracia do séc. IV, têm-na como obra da sabedoria previdente de
Licurgo, o qual, como Sócrates e Platão, dava maior importância à força da educação e à
formação da consciência dos cidadãos do que às prescrições escritas. Com efeito, quanto
maior importância se concede à educação e à tradição oral, menor é a coação mecânica e
externa da lei sobre os detalhes da vida. No entanto, a figura do grande estadista e
pedagogo Licurgo é uma interpretação idealizada da vida de Esparta, vista pelos ideais de
educação da filosofia posterior”.
Assim, apesar de a legislação espartana ser atribuída tradicionalmente a
Licurgo, não se pode olvidar que o direito nas sociedades antigas revestia-se, quase sempre,
de um certo teor de sacralidade necessário ao atendimento da expectativa popular. Como
informa Heródoto, é justamente isso o que ocorre entre as gentes da Lacônia, os quais,
imaginavam que Licurgo teria recebido uma espécie de inspiração sobrenatural do Oráculo
de Delfos para poder compor suas leis. Este contexto mágico-ritualístico podia não ser
típico de Atenas, onde tantas vezes se encomendou aos seus representantes um
ordenamento jurídico eficaz, cuja ratificação, no universo religioso, ao contrário de Esparta,
se fazia absolutamente prescindível. É o que se pode notar a partir do conhecimento das
livres iniciativas políticas tomadas por Drácon, Sólon, Péricles, entre outros tantos nomes
que alcançaram notoriedade para o bem ou para o mal naquela que foi a mais famosa dentre
todas as numerosas pólis da Ática.
Aristóteles, por sua vez, atribuía diretamente à lei o inconveniente de
gerar em Esparta o virtual aumento da pobreza. Isto tudo porque, ao que parece, havia uma
vedação legal ao comércio, considerado uma prática “pouco honrosa” para seus habitantes.
Os bens, assim sendo, eram transmitidos por testamento. Naquela cidade-estado a ninguém
era permitido comprar ou vender imóveis, porém, admitia-se a doação. Esta situação, na
crítica de Aristóteles, gerava fome entre os lacedemônios, incapazes, segundo consta, de
alimentar todo seu imenso contingente militar graças à perniciosa concentração de riquezas
nas mãos de um punhado de aristocratas. Outra das principais motivações a conduzir a
miséria consistia no próprio incentivo à natalidade. Neste ínterim, ao casal que gerasse até
três varões, eximia-se o chefe de família da prestação do serviço militar. Por sua vez,
àqueles que tivessem até quatro filhos, isentar-se-ia completamente do pagamento de
tributos ao estado.
Uma de suas primeiras observações consiste no fato de que as mulheres
da Lacedemônia não recebiam qualquer amparo da lei, como se estivessem isentas de
deveres e, por conseguinte, também de direitos. Esse virtual ‘esquecimento’ da parte de
Licurgo não foi perdoado pelo célebre autor da “Política”, o qual, nesta mesma obra, lhe
reservou severas críticas.
A lei espartana cuidava de regular a organização dos banquetes públicos
(fiditías), eventos estes extremamente populares no contexto helênico. O fim das tais festas
era cívico. Dele poderiam participar todos os cidadãos livres da pólis, desde que, cada qual,
se responsabilizasse por trazer a sua parte. Aristóteles observou que a referida exigência da
Constituição de Licurgo acabou, do ponto de vista factual, afastando os menos favorecidos
das confraternizações.
Opinião semelhante à de Aristóteles pode ser encontrada na obra de
Políbios. Este historiador, a seu turno, resume-se a dizer que apenas a permuta ou o
escambo de bens de consumo era permitido entre as gentes da Lacônia, o que pressupõe,
novamente, uma interdição ao comércio.
Entretanto, ao que tudo indica, a orientação do Estado Espartano pautavase,
em larga medida, na consolidação de um sistema jurídico autônomo que visava, de
modo permanente, propiciar a manutenção de uma formidável máquina de guerra.
Heródoto confirma nosso entendimento ao dizer que Licurgo se dedicou, entre outras
coisas, à composição “das normas relacionadas com a guerra”. Esta opinião também é
partilhada por Aristóteles:
“Também é digno de censura o próprio princípio de que parte o legislador, e Platão não o
poupou em seu tratado das Leis. As virtudes guerreiras, a que se relaciona toda a Constituição
de Licurgo, não são senão uma parte da virtude integral, e são boas apenas para dominar os
outros homens. Assim, os lacedemônios conservaram-se bastante bem enquanto guerreavam,
mas quando submeteram a seu domínio todos os seus vizinhos, começaram a decair, não
sabendo o que fazer de seu ócio, não tendo aprendido nada melhor do que os exercícios
militares”.
É de se imaginar, pois, que a famosa Constituição de Licurgo cuidasse
apenas do trato dos aspectos essenciais relativos à estrutura e funcionamento do país. Tudo
o mais parecia ser conduzido de forma aleatória e pouco sistemática, sob a premissa oficial
do interesse e da segurança nacionais. Segundo Aristóteles, o casuísmo norteava no mais
alto grau a percepção da organização judiciária oficializada pelos lacedemônios. Veja-se
interessante relato a esse respeito:
“Outro absurdo não menos lamentável é ver pessoas colhidas ao acaso julgando em última
instância os maiores casos. Seria necessário, pelo menos, que tivessem um código e julgassem
de acordo com leis escritas, em vez de decidir, como fazem, de acordo com seus caprichos”36.
A grande curiosidade consiste no fato de que os espartanos
comportavam-se de maneira ambígua com relação ao furto e ao roubo. Já se sabe, inclusive,
que em alguns momentos, os guerreiros eram instados a cometer os tais delitos como parte
do cumprimento de um programa que orientava sua rígida educação militarista. As maiores
vítimas dessas cruéis manobras eram os próprios hilotas, dos quais falamos anteriormente.
Todavia, apesar da insuficiência de fontes, imaginamos que as tais práticas, como em qualquer outra sociedade, deviam ser execradas pelo menos entre os cidadãos comuns que
já estavam na reserva. A permissividade quanto às práticas relacionadas alcançava não mais
que o elemento subjugado e destituído do amparo da lei.
Por fim, é do conhecimento geral que da Grécia recebemos o legado da
filosofia. Ora, Esparta - ao contrário da erudita e politizada Atenas - nunca tipificou o
baluarte da cultura grega como a conhecemos hodiernamente. Assim sendo, torna-se
praticamente impossível traçar qualquer paralelo adequado que delimite elementos
coincidentes entre cidades tão díspares, em seu cotidiano e organização político-social,
quanto às duas acima listadas. A única exceção, talvez, seja o idioma. Os lacedemônios,
acima de tudo, consolidaram em primeiro plano uma ativa educação voltada para fins
militaristas e belicosos. Sob este aspecto, Esparta não encontrou similitude no contexto da
Velha Hélade.

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